Publications

Previous PageTable Of ContentsNext Page

IV. USO DE CRIANÇAS NA GUERRA DESDE 1998

A posição da Human Rights Watch é a de que nenhum jovem com menos de 18 anos deve ser recrutado voluntária ou involuntariamente pelas forças armadas, sejam estas de natureza governamental ou não governamental. Durante a guerra, tanto a UNITA como o Governo recrutaram crianças à força para atuarem no conflito, em violação aos tratados e convenções aos quais estavam obrigados. As forças armadas de ambos os lados sujeitaram essas crianças a torturas e maus tratos, a trabalhos perigosos e, no caso das jovens, à violência sexual. O recrutamento e uso de crianças constituíram violações aos seus direitos humanos fundamentais e impediram-nas de alcançar os mais altos padrões de saúde, educação e desenvolvimento. Em seu depoimento ao Terceiro Comitê da Assembléia Geral das Nações Unidas, Graça Machel, que havia dirigido o estudo, assim resumiu o efeito da guerra sobre os direitos das crianças: "A guerra viola todos os direitos da criança: o direito à vida, o direito de crescer em um ambiente familiar, o direito à saúde, o direito a desenvolver-se integralmente e o direito de ser sustentada e protegida, entre outros."11

Rapazes que serviram na UNITA

O número exato de crianças usadas pela UNITA desde 1998 permanece desconhecido, apesar de haver estimativas de que pelo menos 6.000 crianças pegaram em armas para a UNITA.12 O número real deve ser bastante superior e, para chegar ao mesmo, depende-se da definição que for usada de início. A definição preferida pela comunidade internacional e promovida pela Human Rights Watch é conhecida como a definição da Cidade do Cabo, a qual define uma criança-soldado como "qualquer pessoa com menos de 18 anos de idade que participe de qualquer força ou grupo armado, regular ou irregular, em quaisquer funções, as quais incluem mas não se limitam às de cozinheiros, carregadores e mensageiros, bem como as que acompanham tais grupos, exceto se o fizerem apenas como familiares."13 Ao encaixar esta descrição na guerra civil angolana, outros milhares poderiam ser acrescentados ao total precedente de 6.000 crianças.

Ao passar por cidades e vilas, os soldados da UNITA forçaram crianças e famílias a segui-los. Apesar de algumas crianças terem trabalhado voluntariamente para a UNITA, outras foram raptadas enquanto caminhavam para suas escolas, mercados ou de volta à casa. As crianças capturadas nestes ataques serviam como "soldados-aprendizes" ou "auxiliares". No início, recebiam tarefas subalternas, mas mais tarde estes soldados-aprendizes recebiam armas e treinamento, tornando-se combatentes. Todas as crianças entrevistadas para este relatório descreveram as penosas condições da guerra, a rígida hierarquia da UNITA e seu desejo de finalmente sepultar as dificuldades que sofreram no passado. Apresentamos a seguir alguns exemplos representativos (assim como em outras partes deste relatório, seus nomes foram mudados para proteger suas identidades).14

Marcos M. disse à Human Rights Watch:

Eu tinha treze anos quando os soldados apareceram e me levaram. Estava sozinho em minha casa porque meus pais tinham ido ao centro da cidade e, por alguma razão, não estavam presentes quando os soldados chegaram. Os homens armados me disseram que eu tinha o dever de ajudá-los e, então, deram-me materiais roubados para carregar. Eu não tive opção. Não me trataram mal, no início. Mais tarde, me deram armas, munição e granadas.15

Manoel P. teve experiência semelhante:

Me levaram em 1999, quando tinha treze anos. No início, me usaram para o transporte de armas, suprimentos e outros materiais. Havia outras crianças em nosso grupo, cerca de trinta delas. Logo depois nos treinaram para o combate. Usamos os fuzis AK-47 e outras armas. Eu era o mais jovem da minha tropa de cerca de setenta pessoas, entre crianças e adultos. Estive na linha de frente, fiquei doente, com surtos de malária e, às vezes, sem nada para comer. Só estive na tropa porque me capturaram e me forçaram. Não foi minha própria decisão.16

Como outros rapazes entrevistados para este relatório, Luiz J. também combateu na guerra. "Participei dos combates e das ações. No início, me fizeram carregar as coisas e ajudar a preparar a comida, mas mais tarde me ensinaram a combater. Com 14 anos, eu era o mais jovem na minha unidade, apesar de haver outros de 15 e 16 anos. Vi pessoas na minha frente perderem seus braços. . . ."17

O papel dado a uma criança no combate dependia do seu tamanho e do tempo de serviço que já tinha na UNITA. As crianças mais jovens e inexperientes realizavam tarefas não especializadas, ao passo que os rapazes maiores chegavam a usar as armas. Um homem em torno de vinte anos detido pela UNITA durante vários meses explicou que somente as crianças acostumadas com o espírito da guerrilha eram escolhidas para as forças de combate. Isto exigia conhecimento do movimento e a conquista da confiança dos soldados. O outro fator era o tamanho da criança; as crianças mais desenvolvidas fisicamente eram escolhidas para o treinamento em armas e podiam ser prestigiadas com a oferta para usar o uniforme.

Um jornalista que trabalhava em uma província da região sudeste visitou um acampamento da UNITA e entrevistou crianças que declararam inicialmente terem operado os rádios, mas depois acabaram admitindo terem participado do combate. Um rapaz deu detalhes de seu treinamento no quartel geral de Jamba da UNITA, na província de Cuando Cubango, sobre o uso de armas automáticas; ele tinha sido enviado ao combate com apenas 14 anos. De forma semelhante, um bom número das crianças entrevistadas pela Human Rights Watch primeiro informaram que trabalhavam no transporte de armas e somente depois revelaram sua participação no combate propriamente dito. É devido a esta reticência que as autoridades de Angola têm que implementar um programa substancial de desmobilização que não só conte com a participação das crianças mas que também seja concebido para atender às suas necessidades, baseando-se nas suas experiências variadas de guerra. Somente a partir de um entendimento mais completo sobre o papel e o grau de participação das crianças no combate, será possível criar um programa de reabilitação realmente adequado.18

O mero fato de servir como carregador pode ser extremamente perigoso. Como nos disse Carlos B.:

Eu estava com minha família, tivemos que sair devido à guerra - os combates chegaram onde morávamos e tivemos que fugir. Eu tinha 16 anos. Nosso trabalho era carregar coisas pesadas, como por exemplo, os projéteis de morteiros. Havia outras crianças no meu grupo, éramos de trinta a quarenta crianças de 14 a 16 anos de idade. Nosso trabalho principal era carregar as munições desde as bases na altura até as linhas de frente. Era um trabalho difícil porque as cargas eram pesadas. Passávamos fome, não tínhamos roupas adequadas e, às vezes, as pessoas simplesmente "desapareciam".19

João F., de 17 anos:

Houve um momento em que as forças do Governo atacaram nossas aldeias, então eu tive que fugir com meus irmãos, tios e pai. Eu era responsável por carregar o fardo de meu tio, seus materiais, arma e munições. De noite, eu entrava pelo mato procurando comida. Esta era uma atividade perigosa, podia-se deparar de repente com um grupo de combatentes das forças do Governo. Além disso, tinha que levar e trazer mensagens das linhas de frente, às vezes durante o próprio combate. Isto era muito perigoso porque estávamos muito próximos à frente, na linha de combate. Se não tivéssemos sorte, poderíamos ser capturados ou abatidos. Depois, começaram a me mandar às vezes a fazer patrulha e a espiar as tropas do Governo, ver o que estavam fazendo em suas bases.

Durante uma noite em que saí junto a outras crianças para apanhar alimentos, fomos capturados pelas tropas do Governo. Éramos dez rapazes no total. O mais jovem tinha 13 anos naquela época.20

Marcos M. havia se mudado tantas vezes desde seu nascimento que não conseguiu responder onde era seu verdadeiro lar:

Trabalhei com as tropas durante quase três anos. Havia muitas crianças, todos fazíamos o mesmo trabalho, carregávamos armas e outras coisas. Ajudávamos a cozinhar e a apanhar lenha. Carreguei fuzis AK-47 e granadas, porém não participei de nenhum combate, isto era para os mais velhos, os que tinham mais de 15 anos.

Eu percorria longas distâncias a carregar armas, às vezes mais de oito horas por dia. Era um trabalho muito perigoso e exaustivo. Se aparecessem as tropas do outro lado, podíamos "desaparecer".21

Uma vez admitidos na UNITA, as crianças sujeitavam-se aos rigores da vida nas forças armadas. A disciplina era rígida e a punição para a fuga era a morte. Crianças desmobilizadas em 1996 explicaram que quando se capturava uma criança que tinha escapado, os outros tinham que assistir a execução da mesma, mesmo que se tratasse de um membro da família. Outras crianças admitidas desde 1997 descreveram práticas similares pelas quais rapazes raptados eram forçados a assistir fugitivos serem executados a machadadas para servir de lição. Crianças que estavam muito cansadas para continuar as marchas ou que sucumbiam às cargas muito pesadas eram ameaçadas de morte. Todas as crianças entrevistadas sofreram dificuldades extremas e a tensão psicológica da vida em situações onde a mínima infração poderia resultar em espancamento ou açoitamento. Estes exemplos apenas sublinham a necessidade de contar com uma orientação e assistência psicológica às crianças ex-combatentes que sejam realmente condizentes com suas experiências específicas.22

Disse-nos João F.: "Os que não cumpriam as ordens eram punidos e podiam até ser mortos. As crianças também eram punidas. Eu mesmo fui açoitado duas vezes por ter desobedecido a ordens. Outras crianças foram espancadas com bastões pesados."23

Miguel R., de 16 anos, lembra-se:

A disciplina era rígida, a pessoa podia ser punida com o chicote por fazer algo errado. Em outras ocasiões, a pessoa podia ser amarrada ou não receber nenhum alimento. Ou então poderiam ser enviadas a buscar alimentos em áreas minadas ou áreas onde poderiam se deparar com tropas inimigas. Eu queria sair do mato e voltar para minha casa, para minha família, mas não me deixavam. Você tinha que pedir permissão para isto e esta não era concedida. Sofri muito no mato, eu tinha apenas 11 anos quando me pegaram.24

Luiz J. disse:

Você não podia sair antes de receber suas ordens. Se fosse encontrado fora da área na qual tinham ordenado que ficasse, você teria que enfrentar as punições. Fui açoitado várias vezes por não obedecer às ordens, era tudo muito rígido e muitas vezes passávamos fome, cansaço e frio. Era fácil cometer algum erro. Outros tipos de punições poderiam ser a de carregar uma carga particularmente pesada, ser forçado a cortar lenha ou ser mantido imerso em água por várias horas durante a noite. Vi um homem que foi deixado na água durante 5 horas, numa noite particularmente fria. Outra punição humilhante era ser forçado a deitar no chão e rolar o corpo para um lado e para o outro até que lhe mandassem parar.25

Jovens do sexo feminino na UNITA
Muitas menores de 18 anos também serviram na UNITA. Como os rapazes, algumas foram raptadas individualmente, enquanto outras foram reunidas e levadas, junto com outros familiares, durante passagens das tropas por suas aldeias. As moças eram usadas para cozinhar, no trabalho doméstico e para carregar objetos, cumprindo papéis semelhantes aos dos rapazes. As mulheres e moças eram também oferecidas aos comandantes e convidados da UNITA, com os quais eram obrigadas a ter relações sexuais. Outras jovens eram ainda forçadas a casar-se com combatentes da UNITA. As recusas eram tratadas com punições e as tentativas de fuga podiam resultar em morte. O contato com as moças mantidas nas áreas da UNITA depois da guerra era muito difícil. O controle das moças era mais rígido que o exercido sobre os rapazes pelos líderes civis dos acampamentos que visitamos, e em entrevistas semi-privadas com grupos não pudemos confirmar se alguma moça tinha participado do combate ativo. As próprias moças talvez tenham sido mais reticentes e menos dispostas a falar sobre seu passado. Somente por meio de um programa de desmobilização sensível às necessidades das jovens do sexo feminino, será possível conhecer mais detalhadamente seus números e seus verdadeiros papéis durante a guerra, e só então será possível dar início à sua reabilitação.

Uma especialista em direitos das crianças que trabalha em Luanda estimou que o número de jovens menores de idade, casadas com soldados da UNITA, está entre 5.000 e 8.000. Ela também comentou que, devido à dificuldade de acesso a estas moças, não se sabe precisamente quantas ainda estariam vivas e seriam menores de idade e quantas desejariam fugir de sua atual situação doméstica.26 Outra pessoa, que trabalha numa ONG internacional, falou da dificuldade de se aproximar das moças nos acampamentos, apesar de sua concentração geográfica. Ela citou os controles exercidos pelos altos escalões do acampamento como uma razão pela qual o trabalho com tais jovens enfrenta tantos problemas. Explicou ainda que é difícil identificar as moças como um grupo separado dentro de um acampamento. As meninas viviam com suas ou outras famílias e cuidavam de crianças e de outras pessoas da família. As moças ainda podiam ser visitadas ocasionalmente por seus maridos e não se identificam necessariamente como mães solteiras.27

De acordo com uma ativista dos direitos da mulher, uma moça poderá preferir ficar com seu marido, mesmo que tenha sofrido abusos sexuais durante seu relacionamento anterior com ele. Como existem poucas outras opções, ela poderá ver esta condição como preferível à de viver como mãe solteira, devido ao estigma social que acompanha esta última. Uma moça que vive sozinha também pode ser vista como uma ameaça por outras mulheres que vivam na sua proximidade, as quais a consideram como uma concorrente aos afetos de seus maridos. Por temer a rejeição da comunidade e por necessitar ajuda das outras mulheres, uma moça poderá preferir ficar com um marido quase ausente ou abusivo a demonstrar publicamente que é solteira. Ela poderá ver seu marido como uma carga econômica, mas também como uma vantagem social. A citada ativista enfatizou que, apesar disto ser verdadeiro para algumas moças, outras atuariam de forma diferente se se deparassem com outras alternativas, sobretudo aquelas forçadas a situações particularmente abusivas.28

Aproveitando uma dessas alternativas, uma jovem de 16 anos que havia sido raptada durante os últimos anos da guerra e transformada em esposa de um comandante da UNITA, acabou abandonando seu marido para voltar à sua família original. De acordo com uma pessoa que trabalhava numa ONG local e deu-lhe assistência em sua reabilitação, ela foi obrigada a fazer trabalhos domésticos, inclusive era forçada a ter relações sexuais com o comandante durante o período que passou na UNITA. Também era forçada a sair em campo em busca de comida e fornecê-la aos soldados. Se não voltasse dentro de um tempo marcado, ela podia ser punida com a privação dos próprios alimentos. Em épocas de combate, ela carregava objetos militares durante as retiradas e mais de uma vez viu-se presa em meio ao fogo cruzado. Inicialmente, foi internada na área Mimbota de aquartelamento da UNITA, nos arredores de Luanda. Mais tarde, foi liberada para voltar à sua família depois que esta conseguiu encontrá-la por intermédio de um programa nacional de rastreamento. Devido à insistência de sua família e ao trabalho da ativista, ela pôde finalmente partir, apesar dos protestos do marido no acampamento. Conforme explicou mais tarde a ativista, esta é uma opção que muitas jovens na situação dela não tinham tido.29

Um homem que havia servido na UNITA disse-nos que as moças eram usadas principalmente como cozinheiras e domésticas, mas também como escravas sexuais. Quando ocorriam ataques e as tropas da UNITA eram vitoriosas, as moças "dançavam e gritavam para oferecer e proclamar a vitória". Era após tais comemorações que as moças acabavam sendo sexualmente agredidas ou oferecidas aos vários comandantes como troféus merecidos por sua bravura. Ele disse ainda que a moça alocada a cada comandante tinha também que auxiliá-lo transportando materiais a serem utilizados na linha de frente. Sob ataque, elas eram obrigadas a retroceder, carregando seus materiais de guerra.30

Os relatos referentes às danças e à oferta de moças como troféus refletem os depoimentos colhidos pela Human Rights Watch de refugiadas angolanas em Zâmbia, as quais tinham vivido anteriormente com a UNITA. Mulheres e moças contaram que a dança para as tropas era o prenúncio das relações sexuais com os soldados. Elas eram transformadas em "esposas" e obrigadas a cozinhar, plantar e colher, dançar e praticar atos sexuais. As que se queixassem eram espancadas e se lhes agarrassem tentando fugir, podiam ser mortas ou então suas próprias famílias eram punidas. Enfrentando opções que lhes podiam custar a vida, algumas arriscaram a fuga, ao invés de continuar a viver com seus maridos.31 Os depoimentos recolhidos pelos Médicos Sem Fronteiras em 2001 e 2002 detalharam, de forma semelhante, a prática comum de usar as moças como domésticas ou explorá-las sexualmente. 32

Uma assistente angolana de saúde que trabalhava em um dos acampamentos relatou à Human Rights Watch a ocorrência de alguns casos de estupro e assalto sexual desde que se iniciou o internamento dos soldados da UNITA. Mas o grande número de mães adolescentes e moças grávidas no acampamento era não só motivo de preocupação como também evidência da atividade sexual precoce das jovens, seja à força ou voluntariamente. Esta assistente temia pelo futuro destas jovens e por sua saúde, sobretudo considerando-se que algumas não tinham uma família ou uma comunidade às quais retornarem, sem contar a precária condição do atendimento de saúde em Angola. No mesmo acampamento, a Human Rights Watch encontrou um bom número de adolescentes grávidas, com idades de 12 a 15 anos.33

Estas mesmas adolescentes falaram da dificuldade de suas vidas durante a guerra, da penúria por que passaram e de suas esperanças quanto ao futuro. Salientaram sua necessidade de receber ensino e seus desejos de tornarem-se professoras, médicas e mães. Enquanto freqüentavam classes ministradas por adultos nos acampamentos, elas esperavam poder reinstalar-se em suas comunidades de origem e voltar à escola primária. Como não tivemos permissão para falar com essas jovens individualmente ou num ambiente privativo, não pudemos fazer perguntas mais delicadas sobre os abusos sexuais ou obter detalhes dos tipos de trabalhos que executaram durante a guerra. Os rapazes que foram entrevistados privativamente para este relatório forneceram algumas informações sobre a experiência vivida pelas moças na UNITA.

Miguel R. disse à Human Rights Watch:

Havia três moças na tropa conosco e elas eram usadas para carregar materiais, armas, fardos de suprimentos e outros objetos. Elas tinham 13, 10 e oito anos de idade. As cargas que levavam eram pesadas, pois eram ainda muito jovens estas meninas. Nós todos sofremos muito no mato. Elas não estão aqui no acampamento, foram embora.34

Luiz J. disse:

As meninas ajudavam a carregar alimentos e materiais em suas cabeças. Também preparavam a comida quando chegávamos no acampamento. Trabalhei com duas adolescentes de 16 anos que ajudavam a fazer a comida.... A situação era muito perigosa pois estávamos nas linhas de frente do combate. Mas as meninas não ficavam na frente, elas trabalhavam na retaguarda.35

As agências internacionais tiveram dificuldade para identificar as meninas órfãs e mães solteiras nos acampamentos. No passado recente de Angola, as crianças de muitas partes do país pertenciam à coletividade e não aos seus pais. Toda a comunidade tinha responsabilidade pelas crianças e as meninas eram muito valorizadas pois podiam fazer o trabalho doméstico. Seguindo esta prática, as famílias em muitos dos acampamentos da UNITA adotaram meninas órfãs e mães jovens e viúvas, cuidando delas junto aos seus próprios filhos. Uma pessoa que trabalha na área de direitos das crianças em Luanda explicou que, apesar deste tipo de cuidado das meninas por parte das famílias ser preferível, ele dificultava a inclusão das mesmas nas sessões de orientação e na programação. Quando as pessoas que trabalham com assistência internacional fazem perguntas sobre a existência de adolescentes órfãos ou jovens ou adolescentes chefes de família, os adultos que respondem aos questionários podem não entender e incluir todas as crianças e adolescentes que vivem com eles como se fossem seus próprios filhos. A identificação de meninas que podem ter servido em tropas de combate também é dificultada pelo fato de que as famílias recebem alimentos em proporção ao número de pessoas em cada lar, ou seja, já foi constatado que alguns adultos vêem vantagens em incluir estas meninas por eles adotadas como suas próprias filhas e, assim, aumentar os benefícios a que têm direito.36

Uma irmã católica que trabalha com grupos desfavorecidos nos acampamentos e centros de transferência explicou que conseguir um contato mais próximo com as meninas e adolescentes em um programa de desmobilização seria difícil mas não impossível. Como muitas destas moças estarão finalmente em lares com suas famílias ou com seus maridos, muitas vezes já acompanhadas de seus próprios filhos, elas poderão não estar cientes sobre tais programas e sobre a forma de ter acesso aos mesmos. A identificação correta destas moças no momento e seu acompanhamento até chegar aos seus próprios lares poderá ser uma forma de garantir que não sejam esquecidas no futuro. Mais ainda, a irmã acredita que algumas destas moças não queiram passar a vergonha de serem reconhecidas como vítimas da violência sexual e, por isso, titubeiem em apresentar-se e discutir seus problemas. Para ela, os programas concebidos para atuar junto às moças nos locais onde elas normalmente poderiam congregar - ou seja, escolas, igrejas e mercados - poderão ser os mais indicados para conseguir uma aproximação com as mesmas e realizar sua reintegração social. Ela lamentou a atual falta de assistência e de programas concebidos para auxiliar as moças que continuam a existir em grupos invisíveis, em sua maior parte.37

Crianças-soldados usadas pelas FAA

As FAA também usaram crianças nos combates, se bem que em menor medida que a UNITA. Estima-se que 3.000 rapazes com menos de 18 anos possam ter servido nas FAA durante os últimos anos de combate.38 As rusgas (arregimentações) feitas pelo Governo e o recrutamento forçado de jovens do sexo masculino ocorreram em bairros mais pobres, tendo como alvo os desempregados. Estas rusgas eram freqüentemente realizadas à noite e em locais mais periféricos das áreas urbanas. As crianças recolhidas eram geralmente libertadas quando eram demasiado jovens ou quando podiam pagar para conseguir sua liberdade, porém muitos jovens menores de idade foram transportados a bases militares de diferentes províncias e forçados ao serviço militar.39

Durante estas rusgas, a falta de identificação adequada significava que a maioria das crianças não podia provar sua verdadeira idade, apesar da legislação nacional que proíbe seu recrutamento. Apesar do pessoal militar liberar os muito pequenos, os que pareciam capazes e fortes eram recrutados. Uma criança-soldado entrevistada em 2000 por Red Barnet, da organização Save the Children Fund-Noruega, disse que tinha 13 anos de idade quando iniciou seu serviço nas FAA. O fator determinante deste recrutamento não foi sua idade declarada, mas seu tamanho. Como o consideraram de porte suficiente para lutar, ele foi levado para um acampamento militar.40

Um padre que trabalha com crianças ex-soldados nos informou que muitas das crianças levadas foram vítimas destas práticas de recrutamento. A relutância do público em geral em servir nas forças armadas nos últimos anos da guerra levara o governo a agarrar qualquer pessoa que pudesse encontrar, inclusive crianças. De aproximadamente cinqüenta crianças ex-soldados da FAA às quais o padre dá orientação, a mais jovem tem 12 e a mais velha, 18 anos. A maioria está entre os 15 e 17 anos de idade. A maioria destes jovens foi treinada durante a guerra em atividades de mecânica, operação de rádio e trabalhos de reparo. Todos os rapazes com os quais ele trabalha foram recrutados depois que a última seqüência de combates se iniciou em 1998. As crianças também receberam treinamento de armas como parte de seu treinamento básico nos acampamentos militares, tendo combatido diretamente na guerra.41

Os rapazes que combateram para as FAA receberam ainda menos atenção do que aqueles que combateram para a UNITA, em parte devido ao seu número mais reduzido. Além disso, desde o fim da guerra, o processo de liberação das crianças-soldados pelo governo em Luanda às autoridades provinciais e, finalmente, às suas comunidades de origem, ocorre geralmente de forma desconhecida do resto da população. Alguns rapazes soldados recrutados inicialmente podem ter morrido em combate; muitos outros mais são agora adultos. Apesar das meninas e adolescentes terem sido também vítimas de abuso sexual por parte dos soldados das FAA e forçadas a prestar-lhes serviços ocasionais, a Human Rights Watch não teve oportunidade para documentar o uso de jovens do sexo feminino como soldados das FAA.42

De acordo com um funcionário das Nações Unidas, até novembro de 2002 o governo e as agências da ONU haviam identificado cerca de 190 soldados menores de idade nas FAA a serem desmobilizados em Luanda, tendo já conseguido a relocação de 70 deles. Apesar do acesso e cooperação dos líderes militares na capital serem dignos de louvor, nenhum trabalho tinha ainda sido feito nas províncias para garantir que nenhuma criança fosse ainda integrante das forças do governo.43 Um padre que trabalha na periferia da capital mostrou-se preocupado porque, apesar do atendimento às crianças-combatentes da UNITA ser importante, grande número de rapazes havia lutado também do lado das FAA e, no entanto, seu paradeiro ainda era desconhecido. Outro padre que trabalha nas províncias centrais declarou que rapazes menores de idade ainda trabalhavam nas FAA, vivendo nos quartéis e auxiliando os soldados. 44 Em julho de 2002, um jornalista entrevistou um jovem de 14 anos, soldado das FAA na província Kwanza Sul. Designado a uma posição militar fora de Gabela e vestido de forma inteiramente militar, o rapaz temia responder perguntas detalhadas sobre suas funções específicas de trabalho.45

Felipe A., liberado das FAA ao final de 2002, contou-nos a seguinte história:

Eu tinha 15 anos quando fui recolhido pelas FAA. Já tinha fugido da minha região de origem e estava vivendo com uma família na periferia de Andulo. Fui levado de caminhão a um centro de treinamento militar, onde recebi treinamento com mais 180 outras crianças. As que receberam comigo o treinamento sobre armas tinham idade entre 14 e 18 anos, porém mais tarde trabalhei com crianças de apenas 10 anos.

Fomos treinados no uso de armas automáticas como os fuzis AK-47, e nos ensinaram a usar granadas. Alguns jovens também receberam treinamento quanto ao uso de mísseis e armas anti-tanques. Também recebemos treinamento técnico sobre conserto de veículos, mecânica e limpeza e reparos de armas.

Durante a guerra, trabalhei principalmente como mecânico, executando reparos de armas e assistindo aos soldados. Nunca vi nenhuma moça trabalhando com as FAA, somente rapazes. Fui bem tratado pelos militares e recebi alimentação, geralmente arroz com feijão. Transportei armas e houve vezes em que as usei em combate. Durante uma batalha no Moxico, fui ferido com uma bala que me entrou pelo lado esquerdo da têmpora. Convalesci num hospital militar, onde passei um mês no ano passado. 46

Este órfão de 17 anos vive agora com uma família na sua região de origem. Maltrapilho e visivelmente desnutrido, apresentava-se nervoso e tremia durante toda a entrevista. Apesar de ter recebido algum apoio de sua comunidade, a falta de programas governamentais de apoio a crianças como Felipe e centenas de outros combatentes significa que continuam a enfrentar um futuro incerto. Apesar do governo de Angola merecer elogios por libertar crianças de suas tropas, devendo ser encorajado a continuar tal prática, a falta de programas de assistência e de reconhecimento destas pessoas como ex-combatentes é um desserviço aos muitos que arriscaram suas vidas pelo país. Como também é uma violação da obrigação de Angola de tratar da recuperação e reintegração destas pessoas.

11 Graça Machel, Declaração ao Terceiro Comitê da Assembléia Geral das Nações Unidas, 8 de novembro de 1996.

12 Coalizão pelo Fim do Uso de Crianças-Soldados, Global Report on Child Soldiers 2001 [Relatório global de crianças-soldados], 12 de junho de 2001; ver também The World Bank, Technical Annex for a Proposed Grant of SDR 24 Million (U.S.$ 33 Million Equivalent) to the Republic of Angola for an Angola Emergency Demobilization and Reintegration Project [Apêndice técnico de proposta de verba de SDR$24 milhões (equivalente a U.S.$33 milhões) para o projeto de desmobilização e reintegração de emergência em Angola] (Documento do Banco Mundial: Relatório No. T7580-ANG, 7 de março de 2003), pág. 31.

13 Cape Town Principles and Best Practice on the Prevention of Recruitment of Children into the Armed Forces and Demobilization and Social Reintegration of Child Soldiers in Africa, Cape Town, South Africa, April 30, 1997 [Princípios e Melhores Práticas de Prevenção do Recrutamento de Crianças-Soldados pelas Forças Armadas na África, Cidade do Cabo, 30 de abril de 1997][online], http://www.globalmarch.org/virtuallibrary/dci/prevention-armed-forces.htm (informação obtida em 5 de março de 2003).

14 Human Rights Watch, Angola explicada, pág. 84; Médecins sans Frontières, Sacrifice, pág. 11.

15 Entrevista da Human Rights Watch, 3 de dezembro de 2002.

16 Entrevista da Human Rights Watch, 3 de dezembro de 2002.

17 Entrevista da Human Rights Watch, 3 de dezembro de 2002.

18 Entrevistas da Human Rights Watch, 3 e 4 de dezembro de 2002; ver também Justin Pearce, "No-One Fighting for Angola's Child Soldiers" [Ninguém luta pelas crianças-soldados de Angola], Transmissão da BBC News UK, 19 de novembro de 2002.

19 Entrevista da Human Rights Watch, 3 de dezembro de 2002. Em várias entrevistas, as crianças usaram o termo "desaparecer" ao invés de "morrer". Isto parece estar associado à crença em muitas regiões de Angola de que a vida não termina após a morte, mas que o espírito continua e tem um papel importante na vida dos vivos, dando-lhes proteção, orientação e garantindo a harmonia comunitária. Assim, o corpo físico desaparece mas o espírito continua vivo. Ver Christian Children's Fund, Let Us Light a New Fire [Vamos acender um novo fogo], págs. 19-24.

20 Entrevista da Human Rights Watch, 3 de dezembro de 2002.

21 Entrevista da Human Rights Watch, 3 de dezembro de 2002.

22 Entrevista da Human Rights Watch, 4 de dezembro de 2002; ver também Human Rights Watch, Angola explicada, pág. 84; CCF, Let Us Light a New Fire, págs. 38-44, U.S. Department of State, Angola Country Reports on Human Rights Practice [Relatório sobre a prática dos direitos humanos em Angola] (Washington D.C.: The Bureau of Democracy, Human Rights, and Labor, 2000, 2001), section 1F.

23 Entrevista da Human Rights Watch, 3 de dezembro de 2002.

24 Entrevista da Human Rights Watch, 3 de dezembro de 2002

25 Entrevista da Human Rights Watch, 3 de dezembro de 2002.

26 Entrevista da Human Rights Watch, Luanda, 26 de novembro de 2002.

27 Entrevista da Human Rights Watch, Luanda, 26 de novembro de 2002.

28 Entrevista da Human Rights Watch, Luanda, 20 de novembro de 2002.

29 Entrevista da Human Rights Watch, Luanda, 25 de novembro de 2002.

30 Entrevista da Human Rights Watch, 4 de dezembro de 2002.

31 Ver Human Rights Watch, Angola explicada, pág. 84.

32 Ver Médecins sans Frontières, Angola: Sacrifice of a People, pág. 11.

33 Entrevista da Human Rights Watch, 3 de dezembro de 2002.

34 Entrevista da Human Rights Watch, 3 de dezembro de 2002.

35 Entrevista da Human Rights Watch, 3 de dezembro de 2002.

36 Entrevistas da Human Rights Watch, Luanda, 19 e 20 de novembro de 2002.

37 Entrevista da Human Rights Watch, 5 de dezembro de 2002, ver Refugees International, Women's Access to Demobilization and Reintegration Program Funding Essential [Essencial o acesso das mulheres aos fundos dos programas de desmobilização e reintegração], 7 de março de 2003.

38 Coalizão pelo Fim do Uso de Crianças-Soldados, The Use of Children as Soldiers in Africa: A Country Analysis [O uso de crianças como soldados na África: uma análise por país], 1999.

39 Coalizão pelo Fim do Uso de Crianças-Soldados, Child Soldiers 1379 Report [Relatório 1379 sobre crianças-soldados] (Londres: Coalizão pelo Fim do Uso de Craianças-Soldados, 2002), págs. 17-20.

40 Dagens Nyheter, 9 de setembro de 2000 - de Red Barnet, [online], www.rb.se:8082/www/childwar.nsf (consultado em 17 de janeiro de 2003).

41 Entrevista da Human Rights Watch, 28 de novembro de 2002.

42 Entrevistas da Human Rights Watch, 28 de novembro e 2 de dezembro de 2002; ver Médecins sans Frontières, Angola Sacrifice, págs. 11-12.

43 Entrevista da Human Rights Watch, Luanda, 26 de novembro de 2002.

44 Entrevistas da Human Rights Watch, 28 de novembro e 2 de dezembro de 2002.

45 Entrevista da Human Rights Watch, Luanda, 20 de novembro de 2002.

46 Entrevista da Human Rights Watch, 28 de novembro de 2002.

Previous PageTable Of ContentsNext Page