Mapa do Estado de Pernambuco
Sumário
As prisões brasileiras são um desastre quanto aos direitos humanos. Os presos – mesmo aqueles que não foram condenados – são frequentemente mantidos em celas superlotadas, onde proliferam a violência e as doenças. A superlotação nas prisões do estado de Pernambuco é especialmente cruel – elas abrigam três vezes mais detentos do que a sua capacidade, em condições perigosas, insalubres e desumanas.
Durante visitas às prisões de Pernambuco em 2015, um pesquisador da Human Rights Watch se deparou com uma cela sem camas ou janelas, onde 37 homens dormiam sobre lençóis no chão. Em outra cela, que possuía seis leitos de cimento para 60 homens, até mesmo o espaço no chão era insuficiente. Um emaranhado de redes de dormir tornava difícil a tarefa de andar pela cela e um dos presos chegava a dormir sentado, amarrando-se às grades da porta para evitar cair sobre os companheiros de cela. Ali, o cheiro de suor, fezes e mofo era insuportável.
As péssimas condições sanitárias e de ventilação, aliadas à superlotação e à falta de cuidados médicos adequados, fazem com que doenças se espalhem entre os presos. A prevalência de infecção pelo vírus HIV nas prisões pernambucanas é 42 vezes maior que a média observada na população brasileira; a de tuberculose chega a ser quase 100 vezes maior. As enfermarias das prisões sofrem com a falta de profissionais e medicamentos e presos doentes muitas vezes não são levados aos hospitais por falta de escolta policial.
As prisões do estado também sofrem com severa escassez de pessoal, contando com menos de um agente penitenciário para cada 30 presos – a pior relação do Brasil, onde a média é de um guarda para cada oito presos, de acordo com dados oficiais. O Ministério da Justiça considera como adequada a taxa de um agente para cada cinco presos. Em uma prisão pernambucana que funciona em regime semi-aberto, onde alguns presos saem para trabalhar e retornam ao fim do dia, apenas quatro agentes penitenciários ficam de plantão em cada turno para se ocuparem de 2.300 detentos, relatou o diretor do presídio à Human Rights Watch.
A superlotação extrema e a falta de pessoal tornam impossível às autoridades penitenciárias exercerem um controle adequado dentro das prisões. Para lidar com isto, adotaram a prática de delegar esse controle a um único preso em cada um dos pavilhões – áreas cercadas no interior das prisões que normalmente contém vários conjuntos de celas e mais de 100 detentos em cada um. Os presos escolhidos para esta função são conhecidos como "chaveiros", por receberem as chaves do pavilhão e das celas, sendo responsáveis pela manutenção da ordem ali dentro. Os agentes penitenciários controlam apenas a área externa dos pavilhões.
Os chaveiros vendem drogas, extorquem dinheiro dos outros presos e exigem pagamentos em troca de lugares para dormir, de acordo com presos, egressos do sistema prisional, familiares e dois representantes do estado entrevistados pela Human RIghts Watch. Eles também usam "milícias" compostas de outros presos para ameaçar e espancar aqueles que não pagam suas dívidas ou que questionam sua autoridade. Os agentes e autoridades do sistema prisional fazem vista grossa ou até participam das ações dos chaveiros em troca de propinas, de acordo com vários entrevistados, incluindo o diretor de um presídio.
A extrema superlotação também coloca os presos sob risco de violência sexual. A Human Rights Watch entrevistou dois presos que relataram terem sido vítima de estupro coletivo, tendo denunciado as agressões aos agentes penitenciários, que os ignoraram. Em um desses casos, uma investigação foi aberta somente após uma representante da Ouvidoria da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do estado pressionar as autoridades para que tomassem providências. O outro caso nunca foi investigado, de acordo com a vítima.
Um fator preponderante para a superlotação das prisões de Pernambuco tem sido a falta das "audiências de custódia". Essas audiências, nas quais o cidadão detido é conduzido à presença de um juiz prontamente após sua prisão, são exigidas pelo direito internacional, mas não eram – até recentemente – garantidas aos presos em Pernambuco, assim como na maioria dos estados brasileiros. As audiências permitem que os juízes vejam e falem com o detido antes de decidirem sobre a necessidade de manter o suspeito em prisão provisória ou liberá-lo para que aguarde o julgamento em liberdade, além de também permitirem o exame de possíveis evidências de violência policial contra as pessoas detidas. Sem as audiências de custódia, presos podem passar muitos meses em celas superlotadas aguardando por sua primeira audiência com um juiz.
No dia 14 de agosto de 2015, o estado de Pernambuco começou a realizar audiências de custódia com as pessoas detidas em flagrante em Recife, a capital do estado. Com esta nova política, Pernambuco se junta a um crescente número de estados que começaram a implementar audiências de custódia com o apoio do Conselho Nacional de Justiça.
Um estudo da Human Rights Watch a respeito de um programa semelhante conduzido no estado do Maranhão revelou que as audiências de custódia ajudaram a prevenir o encarceramento ilegal e arbitrário de suspeitos de crimes não violentos enquanto os mesmos aguardavam julgamento. Entre outubro de 2014 e março de 2015, os juízes que conduziram audiências de custódia liberaram cerca de 60 por cento dos detidos, após determinarem que não cabia prisão preventiva nesses casos. Em contraste, quando decidiam principalmente com base nos registros policiais, sem que vissem o detido, os juízes permitiam que os suspeitos aguardassem julgamento em liberdade em apenas 10 por cento dos casos.
Quase 60 por cento das quase 32 mil pessoas nas prisões de Pernambuco não foram condenadas pela prática de um crime. Suspeitos de terem praticado crimes não violentos, como furtos e posse de pequenas quantidades de drogas, são frequentemente mantidos nas mesmas celas que traficantes e membros de facções criminosas. A prática de encarcerar presos provisórios e presos condenados no mesmo estabelecimento viola o direito internacional e a legislação nacional.
Atrasos nos processos judiciais violam os direitos dos presos, além de contribuírem para a superlotação. Por exemplo, um preso passou seis anos em uma prisão em Pernambuco à espera de julgamento, sem nunca ter visto um juiz em nenhuma espécie de audiência; outro foi mantido preso por uma década depois de cumprir a pena para a qual foi condenado, de acordo com a Defensoria Pública, que ingressou com habeas corpus para que ambos fossem libertados.
O estado de Pernambuco precisa tomar medidas urgentes para garantir que as condições no interior de suas prisões atendam às exigências do direito internacional e da legislação nacional, o que inclui eliminar a superlotação e as condições deploráveis, insalubres e perigosas a que são submetidos os presos do estado.
Um passo crucial é a implementação das audiências de custódia em todo o estado. Também deve acabar com as longas demoras nos processos judiciais, que fazem com que as celas sejam ocupadas por pessoas que nem sequer deveriam estar ali. Além disso, Pernambuco deve acabar imediatamente com a prática de manter presos provisórios em celas com criminosos condenados.
O governo federal brasileiro pode contribuir com os esforços do estado, oferecendo apoio financeiro, inclusive com recursos do Fundo Penitenciário Nacional; e o Congresso Nacional, por sua vez, deveria aprovar um projeto de lei que torna obrigatória a realização de audiências de custódia em todo o país.
Recomendações detalhadas estão disponíveis ao final deste relatório.
Metodologia
Este relatório se baseia primordialmente em informações coletadas durante visitas a quatro prisões no estado de Pernambuco, em fevereiro de 2015: duas delas são integrantes do extenso complexo penitenciário de Curado, em Recife, enquanto outras duas estão em Itamaracá, a cerca de 45 quilômetros dali. A Human Rights Watch entrevistou 40 presos e egressos do sistema prisional de Pernambuco, assim como seus familiares, juízes, promotores, defensores públicos, autoridades penitenciárias, policiais e representantes de organizações não-governamentais. Entre fevereiro e setembro de 2015, a Human Rights Watch conduziu entrevistas adicionais por telefone com servidores do governo estadual e do poder judiciário.
Omitimos os nomes dos presos, egressos do sistema prisional e familiares entrevistados para protegê-los de possíveis retaliações por parte de outros detentos ou agentes penitenciários. Nesses casos foram usados pseudônimos, como indicado no relatório. Algumas autoridades também solicitaram anonimato. Esses casos também estão indicados nas citações relevantes.
Todos os entrevistados foram informados do propósito das entrevistas e de que suas declarações poderiam ser utilizadas publicamente. Os entrevistados não receberam nenhuma forma de incentivo ou compensação por suas declarações. Todas as entrevistas foram conduzidas individualmente ou, quando não havia alternativa, em pequenos grupos. Todas as entrevistas foram conduzidas em português.
Na preparação do relatório também incluímos informações contidas em autos de processos e sentenças judiciais, assim como dados penitenciários estaduais e federais, informações do Conselho Nacional de Justiça e estudos acadêmicos.
I. Superlotação
O sistema prisional do estado de Pernambuco é o mais superlotado do Brasil, de acordo com o Ministério da Justiça.[1] Em agosto de 2015, o sistema abrigava quase 32 mil presos em instalações projetadas para cerca de 10.500.[2]
A realidade é ainda pior do que o indicado pelos números oficiais. Dois diretores de presídio disseram à Human Rights Watch que, em ao menos duas prisões, as autoridades contabilizam leitos improvisados pelos detentos como vagas oficiais.[3] No Presídio de Iguarassu, mesmo contando-se esses leitos improvisados, as autoridades reconhecem que há menos de uma vaga disponível para cada sete presos.[4]
De acordo com o direito internacional e a legislação brasileira, presos provisórios devem ser mantidos em espaços separados de presos condenados,[5] mas, em Pernambuco, todos permanecem juntos. Os presos são mantidos em pavilhões, que consistem normalmente de vários conjuntos de celas e um pátio com portões, cercados pelos muros externos da prisão. As celas dentro de cada pavilhão não são trancadas e algumas não possuem nem mesmo porta.
À época da visita da Human Rights Watch, em fevereiro de 2015, o Presídio Agente de Segurança Penitenciária Marcelo Francisco de Araújo (PAMFA) abrigava 1.902 presos, embora tivesse sido projetado para apenas 465.[6] Um pavilhão do PAMFA, reservado para presos gays, bissexuais e transgêneros, possuía oficialmente capacidade para 50 pessoas, mas abrigava 170. Alguns dormiam sobre ou embaixo de leitos de madeira improvisados. Outros dormiam no chão, em um pátio estreito com espaços divididos por lençóis, apenas a alguns passos de um esgoto a céu aberto. Os 170 homens compartilhavam dois vasos sanitários.
Na Penitenciária Agro-Industrial São João (PAISJ), em Itamaracá, os presos dormiam em qualquer espaço que estivesse disponível no refeitório, inclusive em cima das mesas e bancos de cimento e no chão entre esses bancos, assim como em todos os corredores da prisão. À época da visita da Human Rights Watch, a instalação abrigava 2.300 pessoas em um espaço oficialmente projetado para um máximo de 630, embora o diretor do presídio tenha afirmado que a capacidade máxima real era de 520.[7]
A situação de superlotação mais extrema ocorre nas celas da “disciplina”. Essas celas abrigam presos que cometeram infrações, mas também aqueles que foram ameaçados por outros presos e precisam ser retirados de seu pavilhão para sua própria proteção. Embora tenham a finalidade de abrigar pessoas por curtos períodos de tempo, essas celas estão cheias de presos mantidos por longos períodos, em condições desumanas.
Em uma das celas sem janelas da ala de "castigo e espera" do Presídio Juiz Antônio Luiz L. de Barros (PJALLB), no Curado, não havia nenhum leito; à época da visita da Human Rights Watch, todos os 37 presos que ali estavam dormiam no chão, sem colchões.[8] Alguns permanecem nessas condições por mais de dois meses, de acordo com representante da Ouvidoria da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do estado.[9]
Em outra cela da ala disciplinar do PAMFA há 6 leitos de cimento para 60 pessoas. Os presos naquela cela, sem camisas por conta do intenso calor e umidade, vivem espremidos em meio de um cheiro insuportável de suor, fezes e mofo. A maioria dorme no chão duro. Alguns dormem em redes, armadas umas por cima das outras, até mesmo por cima do único vaso sanitário. Um dos presos, que tem de dormir sentado por falta de espaço no chão, se amarra às barras das grades para não cair sobre os outros, relataram presos à Human Rights Watch. Alguns deles disseram estar vivendo naquela cela, naquelas condições, por dois anos. Em 01 de setembro de 2015, aquela mesma cela abrigava mais de cem homens, de acordo com uma ONG local que a visitou naquela data.[10]
Na ala disciplinar do PAMFA tem outras cinco celas semelhantes, que abrigam um número similar de presos.[11] De acordo com as normas estabelecidas internamente, o chaveiro deveria permitir a saída dos presos de suas celas por um período de uma hora, uma vez por semana, e por uma hora adicional caso recebam visitas durante o fim-de-semana. De acordo com uma representante da Ouvidoria da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, porém, essa permissão nem sempre acontece.[12] Esse tratamento extremo e brutal viola a proibição internacional contra tratamentos desumanos e degradantes, e pode constituir tortura. As regras internacionais básicas para o tratamento de presos exigem o acesso a áreas abertas por pelo menos uma hora por dia,[13] enquanto que a lei brasileira estabelece duas horas diárias.[14]
Há muitas razões para a extrema superlotação das prisões de Pernambuco, mas um dos fatores que contribuiu para isto foi uma mudança realizada na política de segurança pública em 2007. Naquele ano, o então governador Eduardo Campos lançava o Pacto Pela Vida, um programa que buscava estabelecer uma melhor coordenação entre as polícias civil e militar, promotores, defensores públicos e representantes dos três poderes do estado.[15] O programa fortaleceu a polícia, com incremento de pessoal e equipamentos e estabeleceu bonificações financeiras a policiais pelo alcance de metas relacionadas à apreensão de drogas e armas, execução de mandados de prisão e diminuição das taxas de criminalidade, o que funcionou como incentivo para que a polícia promovesse mais detenções e maior encarceramento.
O número de pessoas presas em Pernambuco aumentou em 68 por cento desde a implementação do Pacto Pela Vida, ao final de 2007, enquanto a capacidade penitenciária aumentou apenas 26 por cento.[16] Um resultado não previsto no Pacto Pela Vida, portanto, foi o agravamento da já severa superlotação das prisões pernambucanas. Antes do lançamento do programa, eles abrigavam o dobro do número de presos para sua capacidade; desde então, passaram a abrigar o triplo. “O estado criou uma política de encarceramento sem pensar se tinha lugar para colocar essas pessoas”, disse Marianna Granja, defensora pública do estado, à Human Rights Watch.[17]
II. Doenças
A superlotação extrema tem graves impactos sobre a saúde dos presos.
Doenças respiratórias são comuns nas prisões pernambucanas, de acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça[18] e pesquisa da Human Rights Watch. Os presídios de Pernambuco registram 2.260 casos de tuberculose por 100.000 presos, uma taxa quase 100 vezes maior que a média na população brasileira.[19]
Na Penitenciária Professor Barreto Campelo, em Itamaracá, a equipe de saúde não consegue submeter os novos presos, que chegam em grande quantidade, a exames de tuberculose, revelou o diretor do presídio. [20] Os detentos são examinados apenas depois que os sintomas aparecem, quando outros presos – que com eles compartilham os espaços confinados e mal ventilados – já foram infectados. “A superlotação impede acabar com o foco”, admitiu o diretor.
A prevalência de infecções pelo vírus HIV entre os presos de Pernambuco é mais de 42 vezes maior que a verificada na população brasileira em geral, chegando a 870 casos por 100.000 presos, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional.[21]
A escabiose ou sarna, uma doença de pele causada por ácaros, também é comum, disse uma enfermeira da PJALLB.[22] A Human Rights Watch entrevistou dois homens que sofriam com doenças cutâneas em seus pés, embora eles não conhecessem o motivo clínico de seus sintomas.[23] Ambos disseram ter recebido apenas pomadas anti-inflamatórias como tratamento. Um deles disse sofrer com o problema já há três anos.
O sistema prisional de Pernambuco emprega apenas 161 profissionais de saúde para cuidar de 31.700 presos, incluindo um único ginecologista para uma população de 1.870 presas, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional.[24] Funcionários disseram que, sofrendo com a falta de pessoal e de medicamentos, as enfermarias das prisões frequentemente podem oferecer apenas cuidados básicos.[25]
Com frequência, os presos precisam ser levados a hospitais locais para tratamento, mas é comum que o traslado não seja feito por falta de escolta policial. O preso Pedro T. (pseudônimo), por exemplo, disse à Human Rights Watch necessitar de cirurgia em um dos olhos, que foi ferido com uma faca em uma briga na prisão. Ele já perdeu cinco consultas hospitalares agendadas, pois a unidade nunca conta com policiais para escoltá-lo.[26]
O saneamento também é inadequado em muitas prisões. Os pavilhões da PAISJ, em Itamaracá, não possuem água corrente, de modo que os presos precisam coletar água em baldes para beber, tomar banho, fazer a limpeza e dar descarga. Eles utilizam torneiras nos pátios, onde água é disponibilizada apenas três vezes ao dia, meia hora por vez, como testemunhamos em uma visita durante a semana. Durante nossa visita, os três vasos sanitários nos pátios estavam entupidos por fezes, havia esgoto correndo a céu aberto pelos pátios da prisão e o lixo se acumulava por toda parte.
III. “Terra sem Lei”
As autoridades penitenciárias utilizam agentes para controlar o perímetro externo das prisões, mas abdicaram da responsabilidade de manter o controle em seu interior, deixando-o aos presos. Em suposta tentativa de manutenção da ordem no interior dos pavilhões, as autoridades entregam as chaves das celas e pavilhões a certos presos, oficialmente chamados de "representantes", mas conhecidos na prisão como "chaveiros".
Os chaveiros são, frequentemente, presos condenados por crimes graves, como homicídio, escolhidos pelas autoridades por sua capacidade de impor respeito aos outros presos, de acordo com um servidor do estado e um egresso do sistema prisional.[27] Eles detêm até mesmo as chaves das celas de alas disciplinares, como testemunhou a própria Human Rights Watch.
"Não tem controle dentro dos pavilhões por parte das autoridades penitenciárias”, disse à Human Rights Watch um agente da penitenciária Barreto Campelo, em Itamaracá.[28] Os agentes penitenciários controlam apenas as áreas externas dos pavilhões. O diretor de Barreto Campelo disse que só podia mostrar certos pavilhões à Human Rights Watch porque não havia pessoal suficiente para garantir a segurança dos visitantes em outras áreas da prisão.[29]
Os chaveiros abusam de seu poder de várias formas, vendendo espaços para dormir, por exemplo. Uma vez que os leitos de cimento são escassos, os chaveiros cobram de outros presos por "barracos" – cubículos de madeira feitos por outros presos – a preços que vão de 600 a 2.000 reais, declararam egressos do sistema prisional e familiares de atuais detentos à Human Rights Watch.[30] Os barracos mais altos, próximos ao teto, são mais baratos, por serem menores e mais quentes. Os presos sobem neles por meio de escadas improvisadas de madeira. Em outros pavilhões, os barracos são simplesmente divisões dentro das celas, feitas com lençóis. Esses barracos feitos de lençóis também são vendidos e alugados.
Uma mulher, Regina T. (pseudônimo), afirma ter pago 2.000 reais por um barraco para seu filho, que tem 20 anos e foi condenado a uma pena de mais de 4 anos de prisão pela posse de uma quantidade de maconha no valor de 50 reais.[31] "Eu mesma entreguei na mão do chaveiro", disse ela. Algum tempo depois, o chaveiro "reformou" a área e seu filho perdeu o barraco.
Alguns chaveiros cobram aos presos a "cota do chaveiro", um valor semanal que é extorquido sob ameaça de espancamentos e que varia de 5 a 15 reais, declararam os entrevistados.[32]
Os chaveiros também ganham dinheiro com a venda de drogas, ou ao autorizar outros presos a vendê-las, disseram vários entrevistados à Human Rights Watch.[33] Crack, maconha e cachaça artesanal são amplamente consumidos nas prisões pernambucanas, revelaram os entrevistados. Na PJALLB, a Human Rights Watch testemunhou dois presos consumindo crack sob uma torre de vigilância. Agentes penitenciários, policiais e outros funcionários não são revistados quando entram nas prisões. O diretor de um presídio disse ter certeza que, em alguns casos, são eles mesmos que trazem as drogas.[34] Entorpecentes e outros tipos de contrabando são também jogados por cima dos muros da prisão pelo lado de fora, como relataram um diretor e um egresso do sistema prisonal de Pernambuco.[35] Nenhuma das unidades visitadas pela Human Rights Watch oferece tratamento para o uso de drogas.[36] Alguns presos compram drogas dos chaveiros a crédito e seus familiares do lado de fora são obrigados a trazerem dinheiro no fim de semana para pagar a dívida. Sandra C. (pseudônimo), uma mulher de 63 anos que vende cosméticos nas ruas e ganha cerca de 1.000 reais por mês, disse à Human Rights Watch que um chaveiro a telefonou de um celular contrabandeado, exigindo que ela pagasse a dívida contraída por seu filho para comprar drogas.[37] “Ou a senhora paga, ou compra um caixão para ele”, ela afirma ter ouvido do chaveiro. Ela deu sua televisão como pagamento, embora ainda estivesse pagando as prestações do aparelho. Para pagar as dívidas de seu filho na prisão, disse ela, “vendi tudo o que eu tinha”.
Os chaveiros vivem em celas privadas, muitas vezes equipadas com televisores, grandes ventiladores, geladeiras e banheiros, como verificou a Human Rights Watch durante as visitas. Outros presos, conhecidos como "chegados", cozinham, limpam e lavam roupas para os chaveiros em troca de privilégios. Em um pavilhão do PAMFA, a Human Rights Watch viu os "chegados" dormindo, conversando e cozinhando no pátio, enquanto os presos que estavam dentro dos blocos de celas não saíam dali havia dois meses, de acordo com um representante da Ouvidoria da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos.[38]
O poder dos chaveiros no interior dos pavilhões é mantido por meio das "milícias" recrutadas por eles. Os membros das milícias espancam os presos que desobedecem as regras dos chaveiros ou devem dinheiro a eles, disseram vários entrevistados à Human Rights Watch.[39] Uma mulher, Maria R. (pseudônimo), disse que membros das milícias espancaram seu sobrinho com porretes.[40] Ela não denunciou o ocorrido às autoridades por temer represálias contra ele. "É a lei do mais forte que manda lá dentro, com a conivência da autoridade", disse Maria R., que cuida do sobrinho porque sua irmã – a mãe do detento – é paralítica.
Duas fontes – um servidor público e um egresso do sistema prisional – disseram à Human Rights Watch que algumas autoridades prisionais vendem o cargo de chaveiro.[41] Este funcionário diz ter testemunhado o pagamento de 70.000 reais pela posição, não tendo denunciado o ocorrido por medo de represálias. Um diretor de presídio declarou que os chaveiros são, em alguns casos, escolhidos pelos diretores ou designados pelo chefe de segurança penitenciária em Pernambco.[42] Em outras ocasiões, os chaveiros que são libertados escolhem seus próprios sucessores, disse o diretor.
De acordo com os entrevistados, os chaveiros com frequência acusam outros presos de infrações para eliminar ameaças ao seu poder ou para ocupar barracos de outros detentos.[43] “Se um chaveiro denunciar à administração que um preso atacou alguém, e trouxer testemunhas, nós acreditaremos nele e puniremos o violador”, admitiu o diretor de presídio à Human Rights Watch.[44]
O chaveiros não protegem os presos de ataques cometidos por outros presos. Detentos recém-chegados ou particularmente vulneráveis são às vezes colocados em celas nas alas de disciplina para sua proteção, mas dois presos disseram à Human Rights Watch terem sofrido estupros coletivos enquanto eram mantidos naquelas celas, as quais compartilhavam com dezenas de outros homens e eram governadas por um chaveiro.
Jorge S. (pseudônimo), um homem de 28 anos, casado e pai de dois filhos, preso sob a acusação de roubar 730 reais de uma mulher em um caixa eletrônico, disse à Human Rights Watch que em setembro de 2014, quando esteve preso no Centro de Observação Criminológica e Triagem Professor Everardo Luna (COTEL) nas proximidades do Recife, cerca de 10 homens com quem ele compartilhava a cela colocaram um saco em sua cabeça, amarraram suas mãos às costas, e o forçaram a fazer sexo anal e oral.[45] Segundo ele, os estupradores jogaram sêmen em seu rosto e o espancaram. “Eu estava gritando, pedindo ajuda, e eles ficavam gritando e cantando. Ninguém veio”, disse ele. Os agressores tinham facas e ameaçaram matá-lo se os denunciasse. Mesmo assim, ele posteriormente denunciou o estupro a um agente penitenciário.
“Quem está preso tem que se fuder”, teria respondido o agente, que nada fez a respeito, de acordo com o preso. Quase um mês depois, uma representante da Ouvidoria da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos encontrou Jorge S. em uma visita à prisão e o levou a uma delegacia para denunciar o ataque.[46] Ele alega ter solicitado um exame para detectar o vírus HIV, pois os agressores não usaram preservativos, mas disse não ter sido levado à enfermaria para fazer o exame.
Jorge S. acredita ter sido alvo dos outros presos por ser natural da Bahia e não ter ninguém no COTEL a quem pudesse pedir proteção.
De modo semelhante, um homem mantido em prisão preventiva chamado Paulo L., de 34 anos, homossexual, disse ter sofrido um estupro coletivo em novembro de 2014, em uma cela na disciplina que compartilhava com outros 67 homens na PAMFA.[47] Paulo L. havia sido enviado à cela após brigar com outro detento. "O preso que tomava conta [da cela] me obrigou transar com três homens", disse Paulo L. à Human Rights Watch. Os estupradores não usaram preservativos. "Eu falei para o chefe de segurança, mas ele falou que era mentira", disse Paulo. Ao relatar sua história à Human Rights Watch, em fevereiro de 2015, ele ainda não havia sido levado a um juiz, não tinha advogado, nem havia conversado com nenhum defensor público desde sua prisão por tentativa de invasão de propriedade, 18 meses antes.
“Os chaveiros são um mal necessário, pois não temos efetivos suficientes”, disse um diretor de presídio à Human Rights Watch.[48] Na PAISJ, uma prisão de regime semi-aberto em Itamaracá na qual alguns presos trabalham durante o dia fora dos muros, todos os 2.300 detentos (quase quatro vezes mais que a capacidade oficial) têm acesso aos pátios durante o dia, e normalmente apenas quatro agentes penitenciários estão de plantão em cada turno.[49] Os agentes permanecem na entrada e nas áreas administrativas, raramente se aventurando nos pátios.
As prisões de Pernambuco contam, em média, com um agente penitenciário para cada 31 presos, de acordo com os dados mais recentes do Departamento Penitenciário Nacional.[50] É a pior proporção do Brasil, onde a média nacional é de um agente para cada oito presos. O Ministério da Justiça considera adequada uma taxa de um agente para cada cinco presos.[51]
“Com a grande quantidade de presos e os últimos dez anos de crescimento carcerário, o Estado infelizmente saiu de dentro da cadeia", disse Eden Vespaziano, Secretário Executivo de Ressocialização de Pernambuco, à Human Rights Watch.[52] “Eu vou trabalhar para o Estado voltar para dentro da cadeia”, prometeu. Pernambuco está tentando dobrar o número de agentes penitenciários e câmeras nas prisões, declarou Vespaziano.
“Tudo está acontecendo porque o Estado deixou o mal tomar conta [das prisões]”, disse o promotor Marcellus Ugiette à Human Rights Watch.[53]
IV. Audiências de Custódia em Pernambuco
Até pouco tempo atrás, os juízes de todo o Brasil não chegavam a ver os detidos antes de decidirem se deveriam permanecer presos até o final do julgamento, fundamentando-se basicamente nos registros policiais para isso. Em outubro de 2014, o estado do Maranhão começou a realizar audiências de custódia com pessoas presas em flagrante. Nessas audiências, os detidos são conduzidos à presença de um juiz para responder a perguntas e, sendo o caso, podem apresentar a ele quaisquer evidências físicas de tortura ou tratamento cruel, desumano e degradante por parte da polícia. Até 3 de outubro de 2015, 22 outros estados haviam implementado as audiências de custódia.[54]
A principal função das audiências de custódia é a de prevenir a prisão ilegal e arbitrária de pessoas, garantindo que aquelas que não devem ser mantidas presas, assim não sejam. Ao desempenhar esta importante função no devido processo legal, as audiências também ajudam a reduzir a superlotação das prisões. Nos primeiros quatro meses e meio da realização de audiências de custódia no Maranhão, por exemplo, os juízes decidiram que 60 por cento dos detidos não deveriam permanecer presos enquanto aguardavam julgamento, e ordenaram sua liberação, de acordo com dados coletados pelo poder judiciário do estado.[55] Em comparação, quando esta decisão era baseada principalmente nos registros policiais, os juízes decidiam pela liberação dos suspeitos em apenas 10 por cento dos casos.[56] As audiências também funcionam como salvaguarda contra maus-tratos, uma vez que vítimas de tortura e outros abusos têm nelas a oportunidade de denunciar esses casos perante o juiz e apresentar ali quaisquer evidências físicas destes abusos.
No dia 14 de agosto de 2015, o estado de Pernambuco instituiu seu próprio programa de audiências de custódia, embora restrito apenas ao Recife. Uma das juízas que participou da elaboração do programa disse à Human Rights Watch que o judiciário pretende expandir gradualmente as audiências de custódia ao resto do estado, embora ainda não tenham definido nenhum cronograma para isto.[57]
A implantação das audiências de custódia no Recife é um importante primeiro passo, o qual deve ser estendido aos detidos em todo o estado quanto antes. Cinquenta e nove por cento de todos os presos em Pernambuco são presos provisórios, de acordo com os dados mais recentes do Departamento Penitenciário Nacional .[58] Eles gozam da presunção de inocência, mas, ainda assim, são mantidos nas mesmas unidades em que estão presas pessoas condenadas, em uma flagrante violação das normas internacionais.[59]
O Congresso Nacional está avaliando um projeto de lei, cuja tramitação foi iniciada no Senado federal em 2011, que torna a realização das audiências de custódia obrigatória em todo o país.[60]
V. Atrasos Judiciais Injustificados
Os presos do estado de Pernambuco muitas vezes têm de enfrentar longas esperas em cada fase de seu processo judicial, antes e depois do julgamento e, em alguns casos, chegam a ser mantidos presos por muito tempo após cumprirem suas penas.[61] O número insuficiente de juízes, defensores públicos e promotores de justiça é a causa dos atrasos, afirmaram um defensor público e uma juiza à Human Rights Watch.[62]
Rodrigo da Silva Gonçalves, por exemplo, foi detido em setembro de 2007, sob a acusação de homicídio. Ele foi interrogado depois de um mês e seu caso não avançou pelos seis anos subsequentes, de acordo com a defensora pública Marianna Granja, que submeteu um pedido de habeas corpus para que Rodrigo fosse solto, em novembro de 2013.[63] Nove audiências foram agendadas e canceladas porque as autoridades prisionais não levaram Rodrigo ao tribunal, alegando falta de escolta policial ou que as testemunhas da promotoria não compareceram à corte. Rodrigo foi libertado em maio de 2014, em virtude do habeas corpus.
Outro indivíduo, que não dispunha de advogado ou familiares para providenciar sua defesa, cumpriu sua pena em 2004 no Curado (na época chamado Presídio Professor Aníbal Bruno), mas passou mais uma década atrás das grades até que a Defensoria Pública impetrou um habeas corpus para sua soltura, disse Granja.[64]
Presos revoltados com os atrasos nos processos judiciais se rebelaram nas três unidades de Curado, em janeiro de 2015, acusando um juiz em particular de ser responsável pelas demoras.[65] Dois detentos e um policial militar morreram durante os atos violentos e o governo do estado declarou o estado de emergência no sistema penitenciário, de acordo com relatos da imprensa.[66]
Em março de 2015, como medida paliativa, 48 defensores públicos de Pernambuco e de outros estados revisaram os casos de Curado. O poder judiciário estadual também alocou juízes de fora do Recife para trabalharem horas extras, temporariamente, para reduzir o acúmulo de processos. Em setembro de 2015, porém, a Afadequipe, uma ONG local que presta assistência aos presos e suas famílias, continuava a receber numerosas queixas dos detentos de Curado em relação aos atrasos em seus processos.[67]
VI. Obrigações do Brasil Perante o Direito Internacional
O direito de uma pessoa detida de ser conduzida à presença de um juiz sem atrasos após sua prisão é consagrado em tratados ratificados pelo Brasil, incluindo o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e a Convenção Americana de Direitos Humanos.[68] O Comitê das Nações Unidas para os Direitos Humanos, órgão responsável por interpretar o PIDCP, informou aos Estados-membros que a exigência se aplica "em todos os casos, sem exceções", mantendo a posição de que o tempo entre a prisão de um acusado e sua apresentação perante uma autoridade judicial "não deve exceder poucos dias", mesmo em estados de emergência.[69] O detido “deve ser fisicamente levado à presença do juiz”, diz o Comitê, uma vez que “a presença física dos detidos em audiência dá a oportunidade para questionamentos sobre o tratamento recebido por eles sob custódia".[70]
Outros países da América Latina incorporaram esse direito em suas leis nacionais. Na Argentina, por exemplo, uma pessoa detida sem mandado judicial precisa ser levada à presença de uma autoridade judicial competente dentro de seis horas.[71] No Chile, pessoas presas em flagrante devem ser apresentadas dentro de 12 horas a um promotor – que, por sua vez, deve libertar o detido ou providenciar uma audiência perante um juiz em até 24 horas da prisão.[72] Na Colômbia, pessoas presas em flagrante devem ser levadas a um juiz dentro de 36 horas.[73] No México, esse prazo é de 48 horas.[74]
As condições de vida nas prisões pernambucanas violam as obrigações internacionais do Brasil, previstas tanto no PIDCP quanto no âmbito da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (CCT). Abrigar presos provisórios juntamente com presos condenados também viola as leis internacionais.[75]
Os presos também têm direito ao nível máximo alcançável de saúde física e mental, conforme garantido pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), do qual o Brasil também é parte.[76] Os governos possuem uma responsabilidade singular em relação aos presos, "que decorre do relacionamento de custódia entre os detentores e os detidos”[77]; além disso, “os Estados têm a obrigação de respeitar o direito à saúde e, de modo semelhante, a obrigação de não negar ou limitar o acesso igualitário de todos, incluindo presos ou pessoas detidas, (...) aos serviços de saúde preventivos, curativos e paliativos”, de acordo com o Comitê das Nações Unidas para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.[78]
O Comitê das Nações Unidas para os Direitos Humanos também reafirmou que o PIDCP exige que os governos ofereçam aos presos "cuidados médicos adequados durante a prisão".[79] Ademais, o Comitê Contra a Tortura, órgão de monitoramento vinculado à CCT, estabeleceu que a falha na oferta de cuidados médicos pode constituir violação da proibição contra tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.
Em maio de 2015, a Comissão das Nações Unidas sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal adotou padrões revisados e atualizados sobre as condições nas prisões, padrões agora conhecidos como Regras de Mandela.[80] As regras se baseiam na premissa de que os presos devem ter sua dignidade humana respeitada. Eles têm direito à segurança e à não-discriminação, e a ter atendidas suas necessidades de saúde e outras. Eles devem receber espaços adequados para viver, com ventilação apropriada, iluminação, aquecimento, saneamento, água limpa, alimentos adequados e nutritivos e um ambiente limpo.
O CCT estabelece que não apenas atos cometidos por autoridades públicas constituem tortura e tratamentos ou punições cruéis, desumanos ou degradantes, mas também atos cometidos com sua conivência. Em 2011, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos pediu ao estado de Pernambuco que eliminasse o sistema de chaveiros no Curado, declarando que agentes penitenciários, e não os chaveiros, deveriam exercer "funções de segurança, controle e disciplina" nos presídios.[81] O estado respondeu a esta demanda alterando o nome da posição, de "chaveiro" para um novo título oficial – “representante” – mantendo, contudo, seu papel anterior.
As autoridades brasileiras têm plena ciência dos abusos ocorridos no Curado, graças a uma coalizão de organizações não-governamentais (Pastoral Carcerária, Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões, Justiça Global, e a Clínica Internacional de Direitos Humanos da Escola de Direito da Universidade de Harvard), que desde 2010 documenta violações de direitos humanos ocorridas ali. A coalizão submeteu uma petição[82] ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos e, em 2014, a Corte Interamericana de Direitos Humanos ordenou que o Brasil adotasse medidas provisórias, incluindo a garantia da segurança dos presos, agentes penitenciários e visitantes no Curado.
Recomendações
Às Autoridades do Estado de Pernambuco
O estado de Pernambuco necessita de profundas reformas em seu sistema prisional após anos de negligência. A Human Rights Watch recomenda que as autoridades dos diferentes Poderes adotem as seguintes medidas:
Governador e Autoridades Prisionais
Segurança
- A Secretaria Executiva de Ressocialização, que administra o sistema penitenciário de Pernambuco e integra a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado, deve dar fim à prática de delegação do controle das instalações prisionais a alguns presos ("chaveiros"). Os detentos nunca devem assumir responsabilidades pela segurança, nem serem colocados em posições de poder em relação aos outros presos;
- A Secretaria Executiva de Ressocialização deve contratar agentes suficientes para garantir a eficaz supervisão dos presos sob sua custódia. Além disso, o estado precisa garantir que haja agentes e veículos em número adequado para transportar os presos aos tribunais e hospitais, sempre que necessário;
- Todos os agentes, servidores e funcionários das prisões devem ser submetidos a revistas, incluindo os agentes penitenciários, quando de sua entrada às instalações prisionais, de modo a prevenir a entrada de drogas, armas e outros contrabandos.
Condições nas Prisões
- As autoridades prisionais devem garantir que todos os presos tenham acesso a itens de necessidade básica, incluindo leitos, colchões, roupas de cama, alimentação nutritiva e em quantidade adequada, água potável e itens de higiene apropriados. As celas devem possuir espaço, iluminação e ventilação adequados;
- As autoridades penitenciárias devem dar fim à prática de manter os detentos que não podem permanecer junto à população carcerária geral (por terem sido ameaçados por outros presos, terem se envolvido em brigas, ou por qualquer outro motivo de vulnerabilidade) em celas de alas disciplinares, sob condições desumanas. A segurança dos presos deve ser garantida sem que seus direitos sejam violados, como, por exemplo, transferindo-os para outras instalações prisionais, se disponíveis, onde não estejam sujeitos a ameaças semelhantes;
- As autoridades prisionais devem seguir rigorosamente a legislação nacional ao punir presos por infrações no âmbito das prisões. As condições nas celas de alas de disciplina devem estar em completa conformidade com os padrões internacionais e com a lei brasileira, incluindo a disposição nacional que estabelece o direito de todo preso a passar duas horas por dia em banho de sol.
Cuidados médicos
- Autoridades prisionais e de saúde do estado devem adotar medidas imediatas para garantir que os presos tenham acesso a cuidados médicos equivalentes aos oferecidos à população em geral, conforme exigido pelodireito internacional;
- As autoridades prisionais devem possibilitar que todos os presos sejam submetidos a exames para detecção de doenças contagiosas quando de sua chegada e, após isso, em> intervalos regulares, além de garantir tratamento imediato àqueles com doenças diagnosticadas;
- Os presos portadores de doenças contagiosas devem ser separados dos presos saudáveis, e receber tratamento médico adequado;
- As autoridades prisionais devem oferecer aconselhamento voluntário sobre o vírus HIV e testes para detecção do vírus aos presos atuais e recém-chegados, proporcionando tratamento antirretroviral imediato àqueles que dele necessitam;
- As autoridades prisionais devem garantir que as enfermarias das prisões estejam abastecidas de medicamentos essenciais.
Prisões Provisórias
- A Secretaria Executiva de Ressocialização deve cumprir com as normas da legislação brasileira e internacional, mantendo os presos provisórios em locais separados daqueles onde ficam presos já condenados. As autoridades prisionais devem também separar presos não-violentos daqueles condenados por crimes graves.
Investigação de Supostos Casos de Abuso
- A polícia civil deve investigar imediata e rigorosamente todos os possíveis casos de abuso contra presos, sejam eles cometidos por outros presos, pela polícia ou por agentes penitenciários;
- Os agentes penitenciários devem alertar a polícia civil, o Ministério Público do Estado, a Defensoria Pública, o Mecanismo de Prevenção da Tortura de Pernambuco e a Ouvidoria da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos sobre possíveis casos de abuso contra presos, imediatamente após tomarem conhecimento deles;
- As autoridades prisionais devem cooperar plenamente com a polícia civil e os promotores de justiça na condução das investigações sobre possíveis casos de abuso;
- O estado de Pernambuco deve fortalecer a capacidade da Ouvidoria da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de coletar e ajudar a responder a denúncias de abusos submetidas por presos, seus familiares e outros. O estado de Pernambuco também deve implementar um programa robusto de proteção à testemunhas.
Supervisão
- As autoridades prisionais devem garantir aos representantes de grupos de defesa dos direitos humanos e outras organizações não-governamentais acesso regular a todas as instalações de detenção, além de permitir que esses representantes falem privadamente com os presos e registrem em multimeios as condições no interior das prisões;
- As autoridades estaduais devem garantir que o Mecanismo de Prevenção da Tortura de Pernambuco possua o pessoal e recursos necessários para cumprir sua missão, além de garantir que seus membros tenham acesso irrestrito às instalações de detenção.
Acesso à Justiça
- As autoridades pernambucanas devem garantir que os presos que não tenham condições financeiras para pagar um advogado tenham acesso aassistência jurídica em tempo hábil, assim como garantir que a Defensoria Pública possua o pessoal e os recursos necessários para cumprir seu papel.
Poder Judiciário do Estado de Pernambuco
- O poder judiciário deve promover a realização das audiências de custódia em todo o estado o mais rápido possível;
- Os juízes devem, dentro dos limites da lei, levar em consideração a extrema superlotação das prisões pernambucanas quando da decisão sobre se um suspeito deve ser mantido preso de forma provisória ou liberado até o julgamento;
- O Poder Judiciário do Estado de Pernambuco, utilizando-se de sua autonomia funcional e administrativa, deve garantir que a justiça seja administrada dentro de prazos razoáveis, assim como pressionar as autoridades estaduais pelo incremento adequado de pessoal e recursos. Ninguém deve ter de esperar por anos por um julgamento ou audiência, nem ser mantido preso mesmo após completar o cumprimento de sua pena.
Ministério Público do Estado de Pernambuco
- Os promotores de justiça devem investigar imediata e ativamente as denúncias de abusos contra os presos, sejam eles cometidos por outros presos, pela polícia ou por agentes penitenciários. Quando abusos forem constatados, os responsáveis devem ser responsabilizados;
- Os promotores de justiça devem investigar a fundo quaisquer denúncias de corrupção ou negligência envolvendo agentes penitenciários;
- O Ministério Público do Estado de Pernambuco, utilizando-se de sua autonomia funcional e administrativa deve garantir que os promotores de justiçapossam executar suas funções dentro de prazos razoáveis, assim como pressionar as autoridades estaduais pelo incremento adequado de pessoal e recursos.
Ao Governo Federal
- O governo federal deve oferecer apoio financeiro, inclusive com recursos do Fundo Penitenciário Nacional, às reformas recomendadas neste relatório;
- Os governos federal e estadual devem cooperar plenamente com a Comissão e a Corte Interamericanas de Direitos Humanos, cumprindo integralmente suas resoluções e medidas cautelares e provisórias.
Ao Congresso Nacional
- O Congresso Nacional deve aprovar um projeto de lei, para tornar obrigatória a realização de audiências de custódia em todo o país.
Agradecimentos
A pesquisa e o texto deste relatório são de autoria de César Muñoz Acebes, pesquisador sênior para o Brasil da Human Rights Watch. O documento foi revisado e editado por Daniel Wilkinson, diretor da divisão Américas; Margaret Knox, editora/pesquisadora sênior; Dan Baum, editor/pesquisador sênior; Maria Laura Canineu, diretora para o Brasil; Joseph Amon, diretor do programa para saúde e direitos humanos; Aisling Reidy, conselheira jurídica sênior; e Joseph Saunders, vice-diretor de programas. Este relatório foi preparado para publicação por Grace Choi, diretora de publicações; Kathy Mills, especialista de publicações; e José Martínez, gerente administrativo.
Agradecemos aos presos, egressos do sistema prisional do estado de Pernambuco, seus familiares e outros indivíduos que contribuíram com informações para este relatório. Também somos gratos à Valderize Campos, representante da Ouvidoria da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do estado de Pernambuco e coordenadora geral da Afadequipe (Associação de Familiares dos Dependentes Químicos, Presos e Apenados do Estado de Pernambuco), assim como ao promotor Marcellus Ugiette, por suas colaborações para a pesquisa que resulta nesta publicação.