Resumo
Em 28 de julho de 2023, a polícia militar do estado de São Paulo iniciou a Operação Escudo na região metropolitana da Baixada Santista após a morte de um policial na cidade de Guarujá, aproximadamente 90 km a sudeste de São Paulo. Vinte e oito2 pessoas foram mortas na operação, que terminou em 5 de setembro, tornando-se uma das mais letais do estado de São Paulo desde o massacre do Carandiru em 1992.
O elevado número de mortes ocorre após uma significativa redução em mortes decorrentes de intervenção policial entre 2020 e 2022. Após uma série de medidas do governo de São Paulo visando reduzir o uso excessivo de força pela polícia militar, as mortes por policiais em serviço em São Paulo diminuíram 59%, de acordo com dados oficiais. Contudo, desde que o Governador Tarcísio de Freitas assumiu o cargo em janeiro de 2023, as mortes por policiais em serviço aumentaram, registrando um aumento de 45 por cento de janeiro a setembro em comparação com o mesmo período do ano anterior, e 86 por cento se comparadas apenas com o terceiro trimestre do ano passado.
A Human Rights Watch analisou 26 boletins de ocorrência, fotografias e 15 laudos necroscópicos, além de realizar entrevistas com autoridades e membros da comunidade, incluindo uma vítima de agressão policial e familiares de três vítimas fatais.
Nossa análise revela falhas significativas nas etapas iniciais das investigações policiais sobre as mortes da Operação Escudo. Essas investigações são conduzidas pela Polícia Civil, que atua como polícia judiciária do estado e investiga a maioria dos crimes. A polícia científica, a qual compete a realização das perícias médico-legais e criminalísticas, está subordinada à Secretaria de Segurança Pública e atua em estreita colaboração com a polícia civil.
No Brasil, a polícia civil é distinta da polícia militar, que, apesar do nome, não integra as Forças Armadas, mas realiza o policiamento ostensivo e a busca por suspeitos, entre outras atividades voltadas, em princípio, à preservação da ordem pública.
Identificamos as seguintes falhas nas investigações iniciais sobre as mortes da Operação Escudo:
- Em 12 dos 26 casos, a polícia civil colheu depoimentos de policiais militares em grupos, e não individualmente. Depoimentos em grupo dificultam a corroboração independente das versões apresentadas.
- Quando a polícia civil colheu depoimentos individuais, eles foram breves e sem detalhes.
- Em seis casos, a polícia civil pareceu ter a intenção de antecipar o resultado da investigação, concluindo, com base apenas nos depoimentos dos policiais envolvidos nos alegados confrontos, que a Polícia Militar havia “agido claramente em legítima defesa”.
- Dos 26 boletins de ocorrência analisados pela Human Rights Watch, a perícia do local dos fatos foi solicitada em 16. Em seis boletins não há solicitação de perícia no local dos alegados confrontos. Em outros 3, a polícia civil decidiu não solicitar a perícia do local, citando fortes chuvas, periculosidade do local e outros fatores. Em outro boletim, as páginas finais estavam faltando, tornando impossível determinar se a polícia solicitou perícia neste caso.
- Em pelo menos sete casos, os corpos chegaram sem roupas para o laudo necroscópico. Itens de vestuário são particularmente relevantes para estimar a distância dos tiros e outras circunstâncias da morte.
- A polícia nem sempre solicitou exame residuográfico. Os exames residuográficos podem ajudar a determinar qual policial atirou na vítima e se a vítima usou uma arma de fogo. Esses testes são particularmente úteis quando as autoridades alegam que as vítimas atiraram, como a polícia militar afirmou em 20 dos 26 boletins de ocorrência.
- A HRW pediu a peritos forenses internacionais que analisassem as 15 autópsias a que teve acesso. Estes peritos concluíram que “com base nos relatórios preliminares da autópsia, os exames post mortem dos quinze indivíduos são ineficazes e não cumprem os padrões mínimos aceitáveis na investigação de mortes relacionadas com armas de fogo no contexto da ação policial”.
- Segundo o Ministério Público, os policiais usavam câmeras corporais em 10 ações relacionadas às primeiras 16 mortes, mas imagens foram registradas em apenas 6 destes casos. Em 4 casos, as câmeras estavam sem bateria ou apresentaram problemas técnicos e não gravaram. Posteriormente, as gravações de outros 3 casos foram enviadas ao Ministério Público, totalizando 9 casos das 28 mortes com gravações.
O uso de câmeras corporais e armas menos letais, a criação de comissões de mitigação de risco para analisar casos de mortes cometidas por policiais militares, verificar se todos os procedimentos operacionais foram seguidos e, se necessário, encaminhar o policial para treinamento e o reforço no apoio psicológico a policiais envolvidos em operações que resultaram em mortes, estão entre as medidas implementadas desde 2020 que contribuíram para a redução de mortes cometidas por policiais em São Paulo.
O Governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas se opôs ao uso de câmeras corporais durante sua campanha eleitoral em 2022. Menos da metade das unidades da polícia militar atualmente está equipada com câmeras corporais, e o Governador Tarcísio de Freitas não adotou medidas para aumentá-las.
Em uma coletiva de imprensa em 31 de julho de 2023, o Governador Tarcísio de Freitas disse que estava satisfeito com os resultados da operação, defendeu a conduta da polícia durante a operação como “extremamente profissional” e afirmou que não ocorreram abusos – embora ainda não houvessem sido realizadas investigações independentes. Até então, oito pessoas haviam sido mortas. Após o número de mortos quase dobrar dois dias depois, ele mudou o tom e disse que as autoridades investigariam a conduta policial e “puniriam os responsáveis” em caso de “excessos” ou “falhas”. No entanto, em declarações que colocam em cheque essa promessa, o Secretário de Segurança Pública do estado disse em 27 de setembro que as 28 pessoas mortas pela polícia haviam morrido por “escolha deles”, e negou que qualquer uma dessas mortes pudesse= ter sido resultado de atos de retaliação ou vingança.
O Ministério Público abriu procedimentos investigativos criminais sobre as 28 mortes, bem como um inquérito civil sobre atos que poderiam constituir violações dos direitos humanos e um procedimento administrativo para monitorar as investigações realizadas pela polícia.
O Brasil há muito sofre com um sério problema relacionado ao uso excessivo de força pelas polícias. Agentes das polícias mataram mais de 6.400 pessoas em 2022, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entidade sem fins lucrativos que compila dados de fontes oficiais dos estados. Em menos de um mês, entre o final de julho e agosto de 2023, pelo menos 62 pessoas foram mortas durante operações policiais apenas nos estados da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo.
Embora algumas mortes cometidas pela polícia ocorram em legítima defesa, muitas resultam do uso excessivo de força, contribuindo para um ciclo de violência que compromete a segurança pública e coloca em perigo a vida de civis e dos próprios policiais.
A Human Rights Watch tem identificado graves falhas nas investigações da polícia civil em relação a mortes decorrentes de intervenção policial.
A Human Rights Watch documentou inúmeros casos no Rio de Janeiro e em São Paulo em que policiais intimidaram ou ameaçaram testemunhas ou manipularam e destruíram evidências, incluindo levando cadáveres a hospitais alegando falsamente que as vítimas ainda estavam vivas e removendo suas roupas; bem como casos em que a polícia civil não realizou investigações adequadas sobre mortes por intervenção policial, ao não visitar a cena do crime, por exemplo.
Estudos analisando dados do Rio de Janeiro sugerem que existe uma probabilidade significativamente maior de a polícia matar após a morte de um policial. Um desses estudos descobriu, por exemplo, que quando um agente é morto em serviço, a chance de uma pessoa ser morta pela polícia aumenta mais de 1000 porcento naquele dia, 350 porcento no dia seguinte e 125 porcento ao longo da semana.
O Ministério Público deveria liderar investigações totalmente independentes sobre mortes cometidas por ação policial, contando inclusive com peritos independentes da polícia para realizar sua própria análise dos fatos e evidências. Deveria, além disso, conduzir suas próprias entrevistas com todas as testemunhas e vítimas, que podem compreensivelmente temer falar com investigadores da polícia civil, por talvez não os considerar independentes da polícia militar. O Ministério Público também deveria determinar se a polícia civil tem conduzido investigações minuciosas, imparciais e imediatas em todos os casos, incluindo nas investigações sobre as mortes de policiais.
Metodologia
Este relatório baseia-se na análise de 26 boletins de ocorrência, fotos de dois cadáveres, 15 laudos necroscópicos e 19 entrevistas, inclusive com o Ouvidor das Polícias do Estado de São Paulo, representantes do Ministério Público, defensores públicos, membros do Conselho Nacional de Direitos Humanos e organizações sem fins lucrativos, bem como peritos, membros da comunidade, incluindo uma vítima de agressão policial e familiares de três vítimas fatais. Omitimos os nomes de vítimas, parentes e moradores da Baixada Santista por razões de segurança.
Todas as pessoas entrevistadas foram informadas sobre o propósito das entrevistas e que suas declarações poderiam ser utilizadas publicamente. Nenhum incentivo foi oferecido ou fornecido às pessoas entrevistadas. Todas as entrevistas foram realizadas em português.
Além disso, analisamos dados estaduais publicamente disponíveis e revisamos estudos acadêmicos, relatórios e outros documentos.
Enviamos solicitações de informações sobre as medidas investigativas adotadas pela polícia civil, mas nem o Secretário de Segurança Pública nem o Delegado-Geral da Polícia Civil haviam prestado informações até o momento da publicação deste relatório.
Operação Escudo
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo declarou que deflagrou a Operação Escudo em 28 de julho de 2023, para identificar, localizar e prender os envolvidos na morte de um policial no dia anterior. Após as prisões de três suspeitos nos dias seguintes, a Secretaria de Segurança Pública anunciou que a operação continuaria por tempo indeterminado, com o objetivo de sufocar o tráfico de drogas e desmantelar o crime organizado na região metropolitana da Baixada Santista. Cerca de 600 agentes da polícia de diferentes unidades da polícia militar de todo o estado participaram da operação.
Após mais de um mês e 28 mortes, o Secretário de Segurança Pública anunciou o fim da Operação Escudo em 5 de setembro de 2023.
Menos de uma semana após o término da operação, um sargento reformado da polícia foi morto em frente à sua casa, o que levou à decisão do governo de São Paulo, em 8 de setembro, de iniciar uma nova operação, desta vez focando na cidade de São Vicente. No mesmo dia, policiais realizaram a busca de supostos suspeitos pela morte, houve troca de tiros e um policial ficou ferido. Durante a ação, outras três pessoas foram atingidas, entre elas uma mulher de 22 anos que morreu vítima de um disparo de arma de fogo. Outros dois homens foram mortos pela polícia nesta nova operação.
Relatos Consistentes de Abuso Policial
A polícia civil colheu depoimentos de policiais militares envolvidos nas mortes no dia dos alegados confrontos. Nestes depoimentos, os agentes informaram que agiram em legítima defesa em resposta a ataques ou ameaças de supostos criminosos.
No entanto, familiares e moradores contam uma história diferente.
Em um caso, um agente da polícia militar afirmou que um homem disparou três vezes contra a polícia, mas um familiar disse à Human Rights Watch que a vítima não conseguia nem segurar direito um secador de cabelo – muito menos uma arma – já que tinha sofrido um acidente que tinha lhe custado o movimento de três dedos e sua carreira como cabeleireiro anos atrás.
O familiar também afirmou que, enquanto a família esperava para reconhecer o corpo no Instituto Médico Legal, o médico legista recebeu várias ligações telefônicas, após as quais eles não puderam ver o corpo, tendo que identificá-lo por meio da fotografia de uma de suas tatuagens. No enterro, entretanto, familiares identificaram ferimentos na cabeça e nos braços, além dos ferimentos à bala, incluindo o que acreditam ser queimaduras de cigarro. Vizinhos disseram aos familiares e à imprensa que ouviram a vítima gritando p antes de ser morta a tiros.
O laudo necroscópico analisado pela Human Rights Watch não menciona queimaduras de cigarro, lesões ou outros sinais que possam indicar tortura, mas descreve seis ferimentos de bala de frente para trás e um na lateral. A polícia civil não solicitou a perícia do local do crime, alegando fortes chuvas e o fato de haver pessoas morando no local.
Em outro caso, agentes afirmaram que, durante uma operação pela manhã, foram recebidos com disparos por um homem que depois tentou se esconder dentro de uma casa, ferindo um policial. Os demais policiais entraram no local e foram alvejados, mas responderam com cinco tiros. O homem morreu antes da chegada dos serviços médicos. Uma testemunha contou à imprensa que a polícia estava tentando pegar alguém que escapou e, depois disso, entraram na casa e atiraram em um homem enquanto ele dormia. Quando a mãe tentou se aproximar do local do crime para reconhecer seu filho, um policial ameaçou atirar nela e em seu neto se ela não se afastasse imediatamente.
Outros moradores relataram abusos semelhantes durante a operação.
Um homem entrevistado pela Human Rights Watch afirmou que três policiais entraram em sua casa no dia 4 de agosto, por volta das 20h, sem autorização judicial e ameaçaram atirar em sua cabeça na frente de sua filha de 2 anos, de sua mãe e de seu irmão, que tem uma condição de saúde mental. Os agentes perguntaram se ele tinha antecedentes criminais. Um dos policiais deu-lhe um soco no rosto. Ele disse que a única razão pela qual não foi morto foi porque sua mãe interveio afirmando que eles eram parte de uma igreja. No mesmo dia, disse ele, sua mãe tentou denunciar o abuso em uma delegacia da polícia civil, mas não conseguiu. Os policiais disseram à ela para ir a outra delegacia e, quando ela chegou lá, disseram-lhe para ir a outra. Ela desistiu.
Uma mulher descreveu o clima de medo em sua comunidade. Ela disse que a polícia impôs um toque informal de recolher e ameaçou atirar em qualquer pessoa com antecedentes criminais que não estivesse em casa até as 20h. Ela também disse que “todo mundo tem medo de ser atingido por uma bala perdida” e que seus filhos estão tão assustados que não querem ir à escola. Outro morador da comunidade relatou que a polícia estava usando uma das escolas para estacionar suas viaturas e que os policiais têm entrado na escola fortemente armados para usar os banheiros, assustando crianças e funcionários. Outro morador disse ainda que suas filhas chegaram em casa chorando porque durante o recreio uma delas quase foi atingida por uma bala de arma de fogo. Ela não queria voltar à escola.
Em outros casos, levantam preocupações as circunstâncias das mortes cometidas por policiais — envolvendo vítimas que não viviam na Baixada Santista, e, de acordo com familiares, nem eram conhecidas por viajarem para lá regularmente e, na opinião deles, era improvável que tivessem decidido ir à Baixada de repente.
Em um desses casos, a polícia relatou que a vítima estava armada e apontou uma arma para os policiais quando foi morta com quatro tiros. Posteriormente, o boletim de ocorrência foi alterado para indicar que a vítima havia efetuado o primeiro disparo. Os policiais disseram que encontraram uma mochila com 446 pacotes de maconha e 357 saquinhos de cocaína perto de onde o tinham avistado com outros dois homens que teriam conseguido fugir. De acordo com o laudo necroscópico, ele foi baleado no queixo, na perna e no braço, de frente para trás, e tinha um ferimento superficial de bala nas costas.
Um familiar entrevistado pela Human Rights Watch contesta a versão da polícia. Segundo ele, o homem nunca havia estado no Guarujá e morava nas ruas de São Paulo, a mais de 90 quilômetros de distância. A família tinha acesso à sua conta bancária e acompanhava suas movimentações, monitorando os locais de onde ele sacava o dinheiro que lhe davam mensalmente. Os registros mostram que ele esteve em São Paulo cinco dias antes de ser morto. Ele não tinha documento de identificação nem dinheiro suficiente para viajar ao Guarujá, segundo o familiar. “Ele vivia com muito pouco dinheiro; não faz sentido ele estar no Guarujá com uma quantidade enorme de drogas e com uma arma, como consta no boletim de ocorrência”, disse ela.
Segundo notícias da imprensa, outras duas vítimas também eram de outras cidades e seus familiares não sabem por que estariam na Baixada Santista no dia em que foram mortos ou como chegaram lá.
O Ouvidor das Polícias do estado de São Paulo disse à Human Rights Watch que recebeu dezenas de denúncias de abusos policiais, incluindo execuções extrajudiciais, tortura, espancamentos, invasões de domicílios, intimidações e ameaças. A Ordem dos Advogados do Brasil, seccional de São Paulo, a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio e as Mães de Maio receberam denúncias semelhantes.
Falhas Investigativas da Polícia
A Human Rights Watch analisou 26 boletins de ocorrência que abordam 27 casos de mortes cometidas por ação policial, bem como laudos necroscópicos de 15 vítimas, e encontrou lacunas importantes na investigação das mortes.
Os laudos necroscópicos mostram que três pessoas foram baleadas à curta distância, duas foram baleadas pelas costas e cinco apresentavam ferimentos de bala vindos de várias direções.
Os laudos indicam ainda que pelo menos sete dos corpos chegaram sem roupas para a realização do laudo necroscópico. Em três deles, as vítimas foram levadas a uma unidade do sistema de saúde, mas chegaram mortas, o que não justificaria a remoção de suas roupas para atendimento médico. Nos outros quatro, os cadáveres foram levados diretamente da cena do crime para o Instituto Médico Legal e estavam sem roupa no momento do exame de autópsia. Peças de vestuário são particularmente relevantes para estimar a distância do tiro e outras circunstâncias da morte e devem ser sempre preservadas para análise, de acordo com padrões internacionais.
A Human Rights Watch também encontrou contradições entre os laudos necroscópicos e os boletins de ocorrência. Três boletins de ocorrência afirmam que a vítima foi encaminhada para uma unidade médica, enquanto o laudo necroscópico afirma que as vítimas foram encaminhadas diretamente para o Instituto Médico Legal.
Em 12 dos 26 casos, a polícia civil não colheu o depoimento dos policiais militares individualmente, mas em grupo. As testemunhas devem ser entrevistadas separadamente para evitar influências indevidas e permitir que os investigadores corroborem as informações fornecidas, comparando-as com outras declarações e evidências.
Dos 26 boletins de ocorrência revisados pela HRW, em 6 a polícia não requisitou a perícia nos locais dos fatos e outros 3 boletins afirmam que a perícia foi dispensada por diversas razões, incluindo o fato de estar chovendo, em um dos casos. A legislação brasileira também exige que um perito analise a cena do crime e colete sangue, cabelos, fibras e outras evidências.[1]
Nove boletins de ocorrência solicitam exames residuográficos que analisam a existência de pólvora na mão das vítimas o que poderia ser um indicativo de disparo. Três mencionam exames residuográficos nos policiais envolvidos no suposto confronto, não na vítima, e outros quatro não são claros sobre quem seria testado. Testes residuográficos conduzidos de forma adequada, usando tecnologia e protocolos apropriados podem fornecer evidências valiosas sobre se as vítimas usaram arma de fogo e se realmente abriram fogo contra os policiais, como alegou a polícia militar em 20 dos boletins de ocorrência. O único exame complementar solicitado nos laudos necroscópicos é o exame toxicológico, em 7 dos 15 casos.
Parecer de peritos internacionais sobre os laudos necroscópicos
Em resposta a uma solicitação da Human Rights Watch, o Grupo Independente de Peritos Forenses (IFEG, sigla em inglês) do Conselho Internacional de Reabilitação para Vítimas de Tortura (IRCT, sigla em inglês)), um proeminente grupo internacional de peritos forenses, analisou 15 autópsias e forneceu um parecer especializado sobre alguns elementos da investigação.
De acordo com o parecer dos especialistas, os padrões internacionais delineados pelo Protocolo de Minnesota não parecem ter sido seguidos, e os exames não foram suficientemente completos nem abrangentes para investigar a possibilidade do uso excessivo de força letal, violência ou tortura e situações de execuções extrajudiciais, arbitrárias e sumárias.
De acordo com os especialistas, as roupas das vítimas aparentemente não foram coletadas para investigação posterior, e sete vítimas chegaram despidas; ademais, não há indicação de que os corpos das vítimas foram cuidadosamente examinados, nem de que foram coletadas amostras essenciais de evidências, em especial de resíduos de disparo de armas. A coleta de amostras de roupas e pele é particularmente relevante em mortes relacionadas a tiros com armas de fogo. De acordo com os peritos internacionais, os resultados do exame laboratorial são fundamentais para uma “adequada e completa reconstituição dos eventos e da maneira e circunstância da morte”, o que inclui a distância e as posições de onde a arma foi disparada.
Além disso, os peritos afirmaram que os laudos necroscópicos contêm pouca documentação de ferimentos externos além dos ferimentos à bala, e que a dissecação de tecidos subcutâneos, importante para detectar ferimentos profundos que geralmente não são externamente visíveis, não parece ter sido adequadamente realizada.
Os peritos internacionais concluem que “com base nos relatórios preliminares de autópsia, os exames post-mortem dos quinze indivíduos são ineficazes e não atendem aos padrões mínimos aceitáveis na investigação de mortes por armas de fogo no contexto de ações policiais”
Ameaças ao Trabalho do Ouvidor
O Ouvidor das Polícias do estado de São Paulo afirmou à Human Rights Watch que recebeu duas ameaças de morte e uma ligação muito preocupante, que atribuiu à retaliação pelo seu trabalho de coletar denúncias de abuso no âmbito da Operação Escudo e de falar publicamente sobre elas.
No dia 2 de agosto, ele registrou um boletim de ocorrência após tomar conhecimento de uma ameaça de morte em um grupo de policiais no WhatsApp. A mensagem dizia: “demorou muito para matar esses vagabundos”, que o ouvidor das polícias “deveria morrer também” e que isso “vai virar uma guerra eu estou pronto”. Em 9 de agosto, ele registrou um segundo boletim de ocorrência após um indivíduo ligar para seu escritório questionando sobre sua agenda, veículo e localização. Em 19 de setembro, uma pessoa ligou para a sede da ouvidoria e relatou que outra pessoa disse a ela estar “cansada de tudo” e disposta a “matar o ouvidor”.
O ouvidor informou ao Secretário de Segurança Pública todas as ameaças recebidas e encaminhou quatro pedidos para o aumento de sua segurança e de sua família, mas não obteve resposta da secretaria.
No dia 6 de outubro, o Ministério Público ajuizou uma ação contra um policial reformado por injúrias raciais e ameaças ao ouvidor.
Investigação Criminal dos Comandantes de Polícia pelo Ministério Público Estadual
De acordo com a legislação brasileira, o Ministério Público pode conduzir investigações criminais contra comandantes das polícias, caso as evidências justifiquem, por “prevaricação”, que pune servidores públicos por não cumprirem adequadamente suas funções “para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”, com pena de até um ano de prisão.[2]
O Ministério Público do estado de São Paulo deveria investigar toda a cadeia de comando, incluindo a responsabilidade das autoridades civis e dos comandantes de polícia que planejaram e ordenaram a operação, para garantir a total responsabilização por eventuais abusos.
Padrões Internacionais
O Brasil é obrigado a conduzir investigações adequadas sobre mortes causadas pelas forças de segurança e determinar se foram legais ou não.
Em 2017, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que, em casos de mortes, tortura ou violência sexual cometidas por policiais, “se delegue a investigação a um órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente, como uma autoridade judicial ou o Ministério Público, assistido por pessoal policial, técnico criminalístico e administrativo alheio ao órgão de segurança a que pertença o possível acusado”.[3]
Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal afirmou que a Constituição Federal incumbe o Ministério Público de exercer o controle externo da polícia e garantir a responsabilização por abusos policiais.[4] Em uma decisão preliminar de 2020, o ministro Edson Fachin considerou que as investigações da polícia civil sobre abusos cometidos por policiais não atendem “à exigência de imparcialidade, reclamada pelos tratados internacionais de direitos humanos”, ressaltando que o Ministério Público deve conduzir suas próprias investigações em casos de suspeita de conduta ilegal de policiais.[5]
Recomendações
Em 2022, a polícia no Brasil matou 6.429 pessoas – 13,6% dos 47.398 homicídios registrados em 2022. O Brasil precisa urgentemente de uma política de segurança pública eficaz que possa prevenir crimes violentos, desmantelar organizações criminosas e proteger civis e policiais.
Ao Secretário de Segurança Pública do estado de São Paulo
Limitar o Uso Excessivo De Força
O Secretário de Segurança Pública deveria retomar e expandir urgentemente as medidas para controlar as forças de segurança e o uso excessivo da força, garantindo inclusive que 100% da dos policiais usem câmeras corporais que funcionem, além de aumentar a disponibilidade de armas menos letais, insistindo nos requisitos de que qualquer uso de força seja proporcional.
Nos últimos anos, o uso de câmaras corporais ajudou a reduzir o uso excessivo da força, a fornecer evidências sólidas, a proteger os agentes policiais, a melhorar a atividade policial e a proporcionar transparência e legitimidade para as ações policiais, entre outros benefícios.
Protocolo para Prevenir “Operações Vingança”
O Secretário de Segurança Pública e os comandantes das polícias deveriam estabelecer diretrizes para prevenir operações vingança após a morte de um agente da polícia. Tais diretrizes deveriam garantir que:
- Policiais da unidade da vítima recebam suporte psicológico e social imediato.
- Policiais da unidade da vítima não sejam empregados em operações em resposta à morte de um policial.
- A Secretaria de Segurança Pública informe imediatamente o Ministério Público e a Ouvidoria sobre todas as operações policiais iniciadas após a morte de um policial.
- A Secretaria de Segurança Pública envie ao Ministério Público, por escrito, uma justificativa com o plano operacional.
- Todos os agentes policiais envolvidos na operação usem câmeras corporais.
Garantir a Segurança do Ouvidor
O Secretário da Segurança Pública precisa urgentemente aumentar a proteção do Ouvidor e de sua família, garantindo que ele disponha de meios para realizar o seu trabalho e investigar as ameaças recebidas.
Ao Ministério Público do estado de São Paulo
Os promotores, que têm o dever constitucional de exercer o controle da atividade policial[6], deveriam conduzir suas próprias investigações sobre todas as mortes e suspeitas de violações dos direitos humanos pelas forças de segurança. Eles deveriam também revisar todos os protocolos e treinamentos da polícia do estado de São Paulo, inclusive sobre uso da força, e garantir que estejam em conformidade com os padrões de direitos humanos brasileiros e internacionais.
O Ministério Público também deveria fortalecer a o controle externo das atividades policiais, garantindo que as investigações policiais sigam o Manual da ONU sobre Prevenção Eficaz e Investigação de Execuções Extrajudiciais, Sumárias e Arbitrárias (Protocolo de Minnesota). Em caso de mortes, por exemplo, os locais dos crimes devem ser preservados por policiais que não estejam envolvidos no confronto. Todas as evidências, incluindo as roupas das vítimas, devem ser preservadas, e a cadeia de custódia das evidências deve ser registrada e respeitada.
O Ministério Público deveria também trabalhar em colaboração com os defensores públicos, a ouvidoria das polícias e os advogados das famílias das vítimas.
Além disso, o Ministério Público deveria instar o estado a expandir o uso de câmeras corporais pelos policiais e monitorar o cumprimento dos protocolos em vigor, emitindo relatórios regulares sobre suas conclusões.
O Procurado Geral de Justiça do estado de São Paulo também deveria trabalhar com a Secretaria de Segurança Pública e os comandos das polícias para desenvolver e implementar diretrizes para garantir a conformidade e, em particular, para prevenir operações vingança.
Em setembro de 2023 a Human Rights Watch publicou recomendações detalhadas[7] para o trabalho de promotores de justiça, que o Ministério Público de São Paulo também deveria levar em consideração.
Agradecimentos
Este relatório foi escrito por Anna Livia Arida, Diretora-adjunta do escritório da Human Rights Watch no Brasil. Foi revisado e editado por Maria Laura Canineu, Diretora do escritório do Brasil, César Muñoz, Diretor-adjunto da Divisão para as Américas, Juanita Goebertus, Diretora da Divisão para as Américas, Michael Garcia Bochenek, Consultor Jurídico Sênior, e Maria McFarland Sanchéz-Moreno, Diretora Adjunta de Programas. A assistente de pesquisa sênior Andrea Carvalho forneceu apoio à pesquisa.
Gostaríamos de agradecer aos familiares das vítimas e aos membros da comunidade que conversaram com a Human Rights Watch. Somos também muito gratos ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública e ao Instituto Sou da Paz pelas recomendações; ao Grupo Independente de Peritos Forenses do Conselho Internacional de Reabilitação para Vítimas de Tortura pela parceria; e à Ouvidoria das Polícias do estado de São Paulo, que realiza um trabalho muito importante em circunstâncias desafiadoras.
Gostaríamos também de agradecer às Mães de Maio e à Rede de Proteção contra o Genocídio que trabalham para apoiar as vítimas e suas famílias, e à Conectas Direitos Humanos, ao Instituto Vladmir Herzog, à Anistia Internacional e à Ordem dos Advogados de São Paulo pelos seus esforços para chamar a atenção para este caso.
Por fim, gostaríamos de agradecer aos promotores estaduais, aos defensores públicos, ao Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE) e ao Conselho Nacional de Direitos Humanos pela assistência em nossa pesquisa.