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III. ANTECEDENTES

A assinatura, em 4 de abril de 2002, do Memorando de Entendimento entre o Governo de Angola e a UNITA encerrou décadas de combate na área continental de Angola. A luta pela independência de Portugal, iniciada nos anos 60, fez com que três grupos nacionalistas se enfrentassem para obter o controle do país. Com a saída de Portugal em 1975, um destes grupos, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), ocupou a capital. Os dois outros grupos aliaram-se na luta contra o governo do MPLA e o conflito que se seguiu entre o MPLA e a UNITA continuou por mais 27 anos. O apoio ao MPLA vinha de Cuba e da União Soviética, enquanto que o governo de apartheid da África do Sul e o governo dos EUA deram assistência à UNITA.

De 1975 a 2002, foram empreendidas várias negociações com o fim de cessar as hostilidades, as quais resultaram infrutíferas. Após uma primeira tentativa fracassada de 1989, os Acordos de Bicesse, assinados em maio de 1991, trouxeram paz ao país durante um ano. Durante este período, foram realizadas eleições nacionais, nas quais venceu o Presidente José Eduardo dos Santos, do MPLA, contra o candidato Jonas Savimbi, da UNITA. Com o repúdio pela UNITA dos resultados eleitorais, o país voltou à guerra em outubro de 1992. As derrotas territoriais da UNITA no interior, durante 1994, levaram a negociações posteriores entre os dois adversários, as quais culminaram na assinatura do Protocolo de Lusaka de novembro desse ano.

O Protocolo de Lusaka, que permitiu uma trégua precária durante quatro anos, foi prejudicado por combates esporádicos e violações de ambas as partes. Tanto o Governo como a UNITA continuaram a se preparar para a guerra durante esse período, adquirindo armas por meio da venda de petróleo e diamantes, respectivamente. Apesar das Nações Unidas terem estabelecido uma Divisão de Direitos Humanos em seguida ao Protocolo de Lusaka, a falta de transparência e de denúncia pública dos infratores do acordo prejudicou a eficácia da divisão. Raramente as partes eram responsabilizadas por suas violações dos direitos humanos. Em 1998, reiniciou-se a guerra declarada entre o Governo e a UNITA.6

O período final da luta de 1998 a 2002 foi marcado por amplas violações dos direitos humanos por ambas as partes. Os combatentes do Governo e da UNITA deslocaram civis à força, numa tentativa de remover todo apoio à oposição. Ambos os grupos atacaram a população civil, bombardeando áreas civis e distribuindo minas pelo campo. O Governo estima que o número de civis desabrigados duplicou nesse período, atingindo mais de 4 milhões de pessoas, além dos 435.000 refugiados em países vizinhos. Durante esses últimos quatro anos de conflito, as forças da UNITA invadiram aldeias e raptaram crianças e adultos, forçando-os a combater em suas fileiras. As forças do Governo também intensificaram o recrutamento, forçando muitos soldados menores ao serviço militar.7

Apesar dos fracassos de acordos anteriores, é grande a probabilidade de que a atual paz seja duradoura. A morte de Jonas Savimbi em fevereiro de 2002 levou a UNITA de volta à mesa de negociações e removeu um dos maiores obstáculos à paz. Desde a assinatura do Memorando de Entendimento em abril de 2002, nenhum combate irrompeu entre os dois grupos, os quais parecem determinados a manter a paz, juntamente com o resto da população do país. Os representantes da UNITA foram incorporados ao Governo, ocupando cargos ministeriais e diplomáticos. O processo de desmobilização continuou e os soldados da UNITA entregaram suas armas e recolheram-se aos acampamentos. No entanto, a não participação das crianças-soldados nestes programas de desmobilização prejudica a legitimidade dos mesmos e poderá ter sérias implicações para o futuro da estabilidade e da ordem pública.

Após o Protocolo de Lusaka de 1994, a Comissão de Desmobilização deu início a um programa formal para as crianças, registrando 9.133 soldados menores de idade. Destes, 5.171 foram desmobilizados. Os rapazes foram aquartelados, receberam um subsídio monetário, alimentos e roupas para seu retorno à sociedade, e foram transportados aos seus locais de origem dentro de um período alvo de seis meses. Foi também estabelecido um programa de acompanhamento para estas e outras crianças separadas durante a guerra, com o fim de garantir a volta das crianças às suas famílias ou parentes mais próximos.8

O processo anterior de desmobilização infantil teve problemas de implementação, estrutura e capacidade de reintegrar satisfatoriamente os participantes. Muitas das crianças permaneceram nos acampamentos muito mais do que o período previsto de seis meses, às vezes por mais de um ano. As dificuldades de estabelecimento do programa, a falta de pessoal qualificado e a manipulação política são razões que explicam algumas dessas demoras. Das crianças que foram registradas, pouco mais da metade foram desmobilizadas, sendo 4.811 do lado da UNITA e 360 das FAA. Os atrasos na oferta de benefícios e os temores de que as crianças fossem recrutadas de novo pela UNITA, quando a possibilidade de guerra ainda pairava no horizonte, levou muitas crianças registradas a simplesmente fugirem dos centros sem submeter-se ao processo formal de reintegração. A falta de separação nos centros entre os soldados adultos e os adolescentes significa que os comandantes da UNITA exerciam controle efetivo sobre estas crianças, fator este que estudos realizados após o conflito identificaram como um empecilho à sua reabilitação. Finalmente, o acesso ao programa limitou-se inicialmente aqueles que podiam mostrar a posse de uma arma, o que impediu a inscrição de muitas crianças ex-combatentes.9

Estavam omitidas flagrantemente do processo de desmobilização as disposições relativas às jovens e às crianças incapacitadas. Apesar do uso de meninas e adolescentes ter sido bem documentado, elas foram ignoradas na concepção e execução do programa. As crianças consideradas como incapacitadas pela guerra também não receberam benefícios. Os planos atuais, que focalizam a reabilitação no seio da família ou da comunidade e não incluem programas específicos para as crianças-soldados, correm o risco de que estes dois grupos sejam novamente esquecidos. Em outras situações pós-conflito, a falta de atenção à reabilitação das jovens fez com que aquelas que não dispunham de famílias ou do apoio comunitário eram forçadas a se defender por si sós. O exemplo de Serra Leoa, onde jovens ex-combatentes foram forçadas a viver nas ruas ou a trabalhar com o sexo é uma advertência sobre os perigos de excluir as jovens dos programas de desmobilização. 10

6 Para ver uma análise abrangente do Processo de Paz de Lusaka, consultar Human Rights Watch, Angola explicada: asscensão e queda do Processo de Paz de Lusaka (Nova York: Human Rights Watch, 1999).

7 Consultar Human Rights Watch, Organização dos Nações Unidas: protecção dos deslocados internos em Angola, press release da Human Rights Watch, 5 de março de 2002. Ver também Médecins sans Frontières, Angola: Sacrifice of a People [Angola: sacrifício de um povo], outubro de 2002.

8 Christian Children's Fund, Let Us Light a New Fire [Vamos acender um novo fogo] (Luanda, Angola: Editora Humbi, 1998), págs. 55-60.

9 Ibid. Ver também Beth Verhey, Child Soldiers: Preventing, Demobilizing and Reintegration [Crianças-soldados: prevenção, desmobilização e reintegração], novembro de 2001, No. 23 da Série de Documentos de Trabalho da Região da África, Press Release da ONU, SC/6830, 23 de março de 2000.

10 Verhey, Child Soldiers [Crianças-soldados], pág. 7; entrevistas da Human Rights Watch, Luanda, 20 e 26 de novembro de 2002; Comissão de Mulheres para as Mulheres e Crianças Refugiadas, Precious Resources: Adolescents in the Reconstruction of Sierra Leone [Recursos preciosos: adolescentes na reconstrução de Serra Leoa] (Nova York: Women's Commission for Refugee Women and Children, 2002), págs. 42-50.

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