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I. SUMÁRIO

A idade influenciou muito a decisão sobre quem deveria receber os benefícios do governo devido à desmobilização [as crianças-combatentes foram excluídas], mas a idade não foi considerada no início, quando decidiram recrutar crianças.

-Ativista angolano dos direitos humanos, 28 de novembro de 2002

Me levaram em 1999, quando eu tinha treze anos. No início, me ocuparam no transporte de armas, suprimentos e outros materiais. Mais tarde, me mostraram como combater. Aprendemos a atirar com os fuzis AK-47 e outras armas. Eu era o mais jovem de uma tropa com cerca de setenta crianças e adultos. Estávamos na linha da frente e eu fiquei doente, tive surtos de malária e às vezes não tinha o que comer. Só fiquei na tropa porque foi aí que me colocaram depois de me capturarem. Não fui eu que tomei esta decisão.

-Manoel P., ex-criança-combatente da UNITA, 3 de dezembro de 2002

Um acordo celebrado entre as forças armadas do Governo e o maior grupo da oposição, a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), trouxe paz à extensão continental de Angola em abril de 2002. Cerca de 100.000 combatentes adultos da UNITA foram aquartelados junto com suas famílias. Destes, 5.000 foram integrados à polícia nacional e às forças armadas, e os restantes foram submetidos a um programa formal de desmobilização. A maioria dos combatentes adultos (18 anos ou mais de idade) receberão documentos de desmobilização e de identificação com foto, um salvo-conduto, um pagamento de 5 meses de salário baseado na posição ou graduação militar, além de subsídio de alimentação. Também deverão receber um subsídio de transporte e equipamentos de reinstalação, assim que voltarem às suas comunidades originais. No entanto, os combatentes jovens de ambos os sexos (de no máximo 17 anos) não foram incluídos no programa de desmobilização e receberam somente os documentos de identificação e o auxílio alimentício distribuído pela comunidade internacional às unidades familiares ligadas aos combatentes.

O atual programa de desmobilização discrimina contra as crianças e adolescentes, muitos dos quais tiveram as mesmas incumbências que os adultos durante o conflito. Ele agrava a injustiça que estas crianças já enfrentaram: o uso de crianças no conflito armado é expressamente proibido pela Carta Africana sobre os Direitos e o Bem-estar da Criança, e a participação das crianças em conflitos armados está entre as piores formas de trabalho infantil, conforme se define na Convenção sobre as Piores Formas de Trabalho Infantil. Como signatário destes instrumentos, o governo de Angola assumiu a obrigação geral de cuidar, proteger, recuperar e reintegrar as crianças afetadas pelos conflitos armados.

A falta de assistência direta a crianças ex-combatentes1 e o fracasso de sua inclusão nos programas de desmobilização prejudica os direitos dos jovens de ambos os sexos que serviram durante a guerra, além de ser um retrocesso nas práticas anteriores seguidas por Angola. Após a assinatura do Protocolo de Lusaka em 1994, que propiciou um cessar-fogo temporário, aproximadamente 9.000 adolescentes combatentes do sexo masculino, tanto da UNITA como do Governo, foram inscritos em um programa de desmobilização. Apesar desse programa ter tido sucesso apenas parcial e apesar de não ter incluído adolescentes combatentes do sexo feminino, ele é um contraste evidente à atual falta de assistência formal aos jovens que serviram nos últimos anos da guerra.

Não existem dados oficiais sobre o número de crianças que combateram com a UNITA e o Governo na última retomada da guerra, no período de 1998 a 2002. A Coligação pelo Fim do Uso de Crianças-Soldados estima que 7.000 crianças serviram nas forças da UNITA e com as Forças Armadas Angolanas, (FAA), do Governo.2 Pessoas envolvidas com a proteção de crianças em Angola informaram que pode chegar a 11.000 o número de crianças, de ambos os lados, que possivelmente viveram e trabalharam em condições de combate. Algumas crianças receberam armas e treinamento para o uso das mesmas e atuaram diretamente nos combates. Muitas outras atuaram como carregadores, cozinheiros, espiões e esposas dos soldados da UNITA. Mas seja que função tiveram, seu trabalho foi certamente perigoso e teve impacto emocional sobre muitas destas crianças.

As crianças entrevistadas para este relatório falaram das provações por que passaram ao servirem sob o comando da UNITA durante a guerra. Encarregadas da perigosa tarefa de levar e trazer mensagens da frente de batalha, descreveram as condições de combate e seu temor de "desaparecer" ou morrer. A função que uma criança tinha na UNITA dependia de seu tamanho; as crianças menores cozinhavam, faziam o serviço doméstico ou recolhiam alimentos, enquanto que as crianças maiores carregavam armas e participavam dos combates. Os pesquisadores da Human Rights Watch entrevistaram um rapaz que tinha 11 anos ao iniciar o serviço na UNITA. Ele nos disse: "Sofri muito na guerra. Tive que carregar equipamento pesado, armas e munições e trabalhar nas linhas da frente."3

As meninas ou adolescentes serviam na UNITA como criadas ou serviçais, ajudantes e "esposas" para os soldados. As mulheres e adolescentes também eram forçadas a servir de "mulheres de conforto" a convidados da UNITA em visita às áreas que esta dominava na guerra. Depois da guerra, muitas destas jovens eram agora mães morando nas áreas de aquartelamento, com ou sem seus "maridos". Outras jovens viviam com seus familiares e não eram tão facilmente identificáveis como grupo separado. No processo de desmobilização que se seguiu ao Protocolo de Lusaka, as jovens não foram incluídas em nenhuma programação formal. As jovens que viveram e trabalharam sob condições de combate não recebem atualmente nenhuma assistência específica e é grande o risco de que suas necessidades sejam mais uma vez ignoradas.

Adolescentes de ambos os sexos falaram da rígida estrutura de comando da UNITA e das severas punições aplicadas em caso de desobediência às regras. Os soldados açoitavam as crianças por não seguirem as ordens ou forçavam-nas a suportar cargas pesadas. Outra forma comum de punição era ordenar às crianças que fossem apanhar lenha e alimentos em áreas dominadas pelas FAA. Uma criança relatou ter sido mantida em água muito fria durante muitas horas por ter-se esquivado a realizar uma tarefa. Muitos destes mesmos comandantes, desmobilizados em 2002, controlavam ainda a informação e o acesso às pessoas abrigadas nas áreas de aquartelamento, se bem que as crianças foram unânimes em afirmar que os abusos físicos haviam cessado.

As organizações internacionais prestaram serviços básicos de alimentação e assistência médica aos residentes de muitas das áreas de aquartelamento. Porém o mau estado das estradas, aliado à época da chuva de dezembro a abril, que fez com que minas mais profundas reaparecessem na superfície do solo, dificultaram a prestação destes serviços e impediram que algumas áreas recebessem assistência. Para facilitar o apoio logístico, os alimentos eram distribuídos às unidades familiares por intermédio de um chefe designado da família. As crianças-soldados não se qualificavam como chefes de família e tinham que se associar a uma família qualquer, tivessem ou não laços familiares com a mesma, para receber sua parcela de assistência. Os jovens de ambos os sexos explicaram que, em alguns casos, as famílias acabavam lhes dando uma parcela insuficiente e que eles eram geralmente os últimos a conseguir algo de comer. Apesar de terem afirmado que as condições de vida melhoraram muito após o fim da guerra, ainda não dispõem dos artigos básicos de sobrevivência nos acampamentos. As crianças revelaram que lhes faltam ainda roupas, cobertores ou mantas, sapatos e materiais escolares.

O governo de Angola também usou crianças-soldados após a guerra, apesar das leis nacionais proibirem seu recrutamento obrigatório. Muitas foram recolhidas e forçadas a combater pelas FAA durante esforços de recrutamento em áreas dominadas pelo governo. Alguns rapazes recebiam treinamento sobre o uso das armas e combatiam nas linhas de frente. Outros trabalhavam como operadores de rádio e na execução de reparos mecânicos. Em cooperação com agências internacionais, o governo liberou alguns rapazes que guarneciam posições na capital, Luanda, em 2002. Observadores que trabalhavam nas províncias informaram à Human Rights Watch que soldados menores de idade ainda serviam nas FAA em áreas rurais, geralmente longe do escrutínio da comunidade internacional, e que uma desmobilização mais ampla ainda estava para ocorrer.4 Por exemplo, um jornalista disse à Human Rights Watch que havia entrevistado um adolescente de 14 anos que ainda servia nas FAA na província de Kwanza-Sul em meados de 2002.5

As crianças que foram desligadas das FAA não receberam nenhum dos benefícios oferecidos a ex-combatentes. Foram enviadas de volta às suas famílias ou parentes em seus locais de origem, porém não lhes foram oferecidos abrigos e alimentos adequados, atendimento de saúde e oportunidades educacionais, situação esta antagônica ao compromisso assumido por Angola de cuidar e recuperar as vítimas do conflito armado. Alguns assistentes sociais salientaram que as condições destas crianças são tão penosas que muitas declararam estar prontas para voltar às forças armadas onde pelo menos tinham a garantia de algo para comer e um lugar seco para dormir.

Milhares de crianças ex-combatentes da UNITA, que estarão sendo levadas dos acampamentos aos centros de transferência e de volta às suas regiões de origem em 2003, terão provavelmente que enfrentar muitas das mesmas dificuldades enfrentadas por aquelas que já foram desligadas das FAA. Enquanto encontravam-se nos acampamentos, estas crianças tinham acesso à assistência alimentícia e a algum atendimento de saúde-um luxo que muitas outras crianças de Angola não têm. Ao serem entrevistadas para este relatório, as crianças mostraram-se preocupadas ao falar do futuro e da dificuldade de entender e aceitar seu passado violento, sublinhando a necessidade de uma orientação psicossocial específica e de sua integração à comunidade.

Alguns programas comunitários empreendidos pelo Governo para a reabilitação de crianças foram planejados com o apoio da comunidade internacional. Os programas promovem a reabilitação familiar e comunitária, mas não fazem menção específica às crianças-combatentes, supostamente porque tal identificação prejudicaria sua reintegração. Apesar destes programas poderem fortalecer a coesão comunitária a curto prazo, sua omissão na escolha específica de crianças-combatentes de ambos os sexos como alvo de programas reconhecidos indica que muitas destas crianças e suas necessidades especiais em termos de recuperação e reabilitação continuarão ignoradas. Além disso, presume-se que estas crianças ex-combatentes disponham de famílias e das comunidades para prestar-lhes assistência, o que nem sempre acontece. Finalmente, a continuidade da paz e da estabilidade no campo depende em parte do sucesso da reintegração daqueles que pegaram em armas. Se as crianças-combatentes forem deixadas à margem do processo, corre-se o risco de que pelo menos algumas delas caiam nas mãos de elementos que procuram desestabilizar a transição de Angola a uma situação de paz completa.

Depois de décadas de guerra civil, a infra-estrutura de Angola encontra-se em ruínas. Encontram-se minas terrestres por toda parte no campo, e hospitais, clínicas de saúde e escolas foram destruídos nos combates. A falta de profissionais qualificados no interior significa que os serviços básicos de saúde e educação não estão disponíveis para a maioria da população. Apesar destas áreas terem sido identificadas como prioritárias em 2003, o governo terá que cumprir sua promessa de garantir a implantação progressiva dos direitos à educação e ao padrão mais elevado possível de saúde. O sucesso final dos programas de reintegração de crianças ex-combatentes em suas comunidades depende do nível de acesso que elas tiverem aos serviços sociais básicos.

Angola assumiu a presidência da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC, em inglês) em outubro de 2002 e, a partir de janeiro de 2003, um assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas. A maior proeminência internacional de um país deveria se fazer acompanhar também de uma maior responsabilidade social e ética perante seus cidadãos e o oferecimento a eles de maiores benefícios. É preciso que a comunidade internacional pressione o governo de Angola para cumprir tais obrigações. Apesar das agências das Nações Unidas e das organizações não governamentais poderem e deverem ter um papel em atividades humanitárias e de desenvolvimento, é o Governo que tem a responsabilidade principal por garantir os direitos à educação e à saúde e por cuidar da reabilitação das crianças ex-combatentes.

Este relatório destaca a difícil situação atual de crianças e adolescentes que combateram na guerra civil e a falta de programas para atender às suas necessidades específicas. Mas praticamente todas as crianças de Angola foram afetadas pelo conflito. O Governo deveria estabelecer como prioritário o trabalho para garantir os direitos à educação e ao mais alto padrão de saúde possível para todas as crianças e adolescentes. Como os menores de 18 anos representam 60% da população do país, depende disto a existência de paz e prosperidade no futuro de Angola.

Métodos
Este relatório baseia-se em uma pesquisa realizada em Angola em novembro e dezembro de 2002. Conduzimos entrevistas na capital, Luanda, e em duas províncias, Bié e Moxico. Os pesquisadores da Human Rights Watch entrevistaram jovens que haviam combatido, ainda crianças, para a UNITA e para as FAA. Os rapazes ex-combatentes foram entrevistados individualmente e as moças ex-combatentes, em grupos. Não foi possível combinar com as autoridades dos acampamentos a realização de entrevistas confidenciais e privadas com as jovens do sexo feminino. A informação aqui apresentada sobre abuso sexual das jovens foi retirada de pesquisas feitas anteriormente em 1998 e 1999 pela Human Rights Watch feitas, entrevistas do pessoal da área de assistência que trabalhava com essas jovens nos acampamentos, e entrevistas privadas com rapazes combatentes.

Também conversamos com líderes militares tanto anteriores como atuais, representantes de organizações não governamentais (ONG) nacionais e internacionais, membros do clero, funcionários da Organização das Nações Unidas e autoridades do governo. Os nomes, identidades e origem das crianças entrevistadas para a preparação deste relatório foram mudados ou omitidos para protegê-las.

1 Neste relatório, a palavra "criança" significa qualquer pessoa com menos de 18 anos de idade. O artigo 1 da Convenção sobre os Direitos da Criança define a criança como "qualquer ser humano com menos de 18 anos de idade, exceto se, pela lei aplicável no país às crianças, a maioridade for conferida em idade inferior". Convenção sobre os Direitos das Crianças, Res. G.A. 44/25, Doc. A/RES/44/25 da ONU.

2 Coalizão pelo Fim do Uso de Crianças-Soldados, Relatório Global sobre Crianças-Soldados de 2001, 12 de junho de 2001.

3 Entrevista da Human Rights Watch, 3 de dezembro de 2002.

4 Entrevistas da Human Rights Watch, Bié, 28 de novembro, e Moxico, 2 de dezembro de 2002.

5 Entrevista da Human Rights Watch, Luanda, 20 de novembro de 2002.

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