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I. Resumo

Afinal os meninos foram ou não foram torturados? Porque é que todas as vezes que a gente fala de um caso concreto se discute sobre tudo mas nunca ninguém fica sabendo se aconteceu ou não?  Porque é que, na prática, sempre o acusador vira acusado? . . .  Porque não se consegue nunca levar um caso adiante? Porque todas as outras questões burocráticas se colocam nesta hora? . . .  Porque precisamos passar um imenso e insuportável procedimento que leva a gente a se sentir de uma inutilidade profunda?
—Perguntas de Eliana Rocha, conselheira, Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente, a Sérgio Novo, diretor geral, Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas, na plenária do conselho em 10 de novembro de 2004. 

Na última visita da Human Rights Watch aos cinco centros de internação juvenil do Rio de Janeiro, em julho e agosto de 2003, encontramos um sistema decrépito, imundo e perigosamente superlotado.  As instalações que vimos não atendiam aos mais básicos padrões de saúde ou higiene.  As reclamações de maus tratos eram rotineiramente ignoradas pelo Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas (DEGASE), órgão estadual responsável pelos centros de detenção juvenil do estado.  Mais particularmente, as sanções administrativas contra os agentes eram raras e nenhum dos nossos entrevistados tinha conhecimento de um caso em que um agente tenha sido criminalmente condenado por comportamentos abusivos.1

As autoridades do DEGASE agiram prontamente para denunciar nosso relatório, divulgado em dezembro de 2004, alegando que o mesmo continha informações desatualizadas e que refletia as práticas da administração anterior.  O diretor geral do DEGASE, Sérgio Novo, descreveu o relatório como “uma injustiça,” declarando à Folha de S. Paulo:“[M]ostram  uma realidade completamente diferente da que temos hoje”.2

Na verdade, em nosso retorno em maio de 2005, constatamos que muito pouco tinha mudado, apesar dos protestos do DEGASE em contrário.  Como documenta este relatório, espancamentos e outras agressões físicas continuam.  As condições pioraram em vários centros de internação.  As deficiências críticas de pessoal, alimentos e vestuário nesses centros de detenção implicam que os jovens estão sujeitos diariamente a um tratamento cruel e degradante.

O Educandário Santo Expedito é um desses casos.  Se, em julho de 2003, quando o inspecionamos pela primeira vez, havia aí muito mais internos do que sua capacidade oficial, ele se apresentou ainda mais superlotado quando voltamos em maio de 2005.  Em ambas as ocasiões, os jovens estavam amontoados em blocos de celas de um único prédio.  Os alojamentos nos outros prédios haviam sido destruídos num incêndio de novembro de 2002 e não foram reparados até o final de 2004.  Mas, mesmo reparados, não estão sendo usados atualmente para abrigar os jovens internos.  A única melhoria detectável é uma nova mão de tinta amarela nas portas de grades que permitem a entrada em cada bloco de celas, para cobrir a pintura azul decrépita e suja que vimos na primeira inspeção.  “Pura maquiagem”, comentou Tiago J., ex-agente de disciplina, ao ouvir nossa descrição do que tínhamos observado em nosso retorno ao Santo Expedito.3

Os espancamentos pelos agentes são comuns em todos os centros de internação, à exceção do Educandário Santos Dumont, centro de detenção juvenil feminino.  “As coisas [aqui] são ruins porque eles batem em nós”, disse Roberto G., 17 anos, referindo-se ao Santo Expedito.  Quando lhe perguntaram o que queria dizer com isso, e por que fizeram isso, ele respondeu: “Os agentes. . .  . É por qualquer razão.   Eles nos batem no rosto, no peito.  Usam o punho e também pedaços de pau.  São os agentes que fazem isso.” Alguns são piores do que os outros, ele nos disse.  “Isto acontece de vez em quando.  A última vez foi há duas semanas, na quinta-feira.  Um agente me espancou.”4   

Com a autorização da Secretaria de Estado da Infância e da Juventude, entramos no Santo Expedito e dois outros centros de detenção, o Educandário Santos Dumont e a Escola João Luiz Alves, antes que as autoridades do DEGASE se recusassem a permitir que continuássemos nossa investigação.  O procedimento desse órgão foi tanto um ato de insubordinação – já que o DEGASE subordina-se à Secretaria – como uma indicação evidente de que as autoridades de internação sabiam que suas práticas seriam consideradas inaceitáveis.

Apesar dos esforços do DEGASE para obstruir nossa investigação, pudemos avaliar as práticas nos outros centros, o Centro de Atendimento Intensivo-Belford Roxo (CAI-Baixada) e o Instituto Padre Severino. Para isso, examinamos arquivos de processos judiciais e outras provas documentais, além de entrevistarmos pais, jovens ex-internos, autoridades de detenção e outras pessoas familiarizadas com as condições nesses centros.

Os espancamentos e outros maus tratos que constituem a rotina das instalações de detenção do Rio de Janeiro, são resultado de uma falha sistêmica do processo de responsabilização ou prestação de contas.  Simplesmente, não há monitoramento independente e eficaz dessas instituições.  Os promotores públicos têm poderes para inspecionar os centros de detenção juvenil, mas quase nunca o fazem.  Defensores públicos tem tentado preencher este vazio, mas uns 20 distritos judiciais (comarcas) não tem um defensor público, fato que significa que alguns jovens nesses distritos não têm representação legal alguma. 

As inspeções judiciais se concentram nos detalhes administrativos – ou seja, número de internos, número de funcionários, quantidade de sabão detergente em cada centro – mas não demonstram inclinação para examinar as queixas de agressões pelos agentes.  A corregedoria do DEGASE não conta com a independência suficiente para levar a cabo sua missão.

Neste relatório, o décimo-oitavo da Human Rights Watch sobre a justiça juvenil e as condições de detenção de crianças e adolescentes, avaliamos o tratamento desses jovens à luz do direito internacional, como define a Convenção sobre os Direitos da Criança e outros instrumentos internacionais de direitos humanos.5

Usamos a palavra “criança” neste relatório em referência a qualquer pessoa com menos de 18 anos de idade.  A Convenção sobre os Direitos da Criança define criança como “qualquer ser humano com menos de 18 anos de idade, exceto se, nos termos da lei aplicável à criança, a maioridade puder ser alcançada mais cedo”.6  Este uso difere da definição de “criança” na legislação de justiça juvenil do Brasil, a qual distingue entre pessoas com menos de 12 anos de idade (as quais são consideradas “crianças”) e pessoas de 12 a 17 anos de idade (“adolescentes”).  Por esta razão e devido ao fato de que um centro de internação do Brasil pode receber tanto adolescentes como adultos jovens até a idade de 21 anos, este relatório usa o termo “jovem” para referir-se a qualquer pessoa de 12 a 21 anos de idade.7  Damos nomes fictícios a todas as crianças e jovens internos mencionados neste relatório, para proteger sua privacidade e segurança.



[1] Ver Human Rights Watch, “Verdadeiras Masmorras: Detenção Juvenil no Estado do Rio de Janeiro (New York:  Human Rights Watch, 2004).

[2] “Realidade hoje é diferente da de 2003, diz diretor”, Folha de S. Paulo, 8 de dezembro de 2004, pág. C4.

[3] Entrevista da Human Rights Watch com Tiago J., Rio de Janeiro, maio de 2005.  A seu pedido, seu nome real não aparece neste relatório.

[4] Entrevista da Human Rights Watch com Roberto G., Educandário Santo Expedito, 23 de maio de 2005.

[5] Para ver uma descrição mais completa do métodos que usamos ao investigar os centros de detenção juvenil, ver o relatório da Human Rights Watch, “Verdadeiras masmorras: Detenção juvenil no Estado do Rio de Janeiro” (Nova York:  Human Rights Watch, 2004), págs. 4-6.

[6] Convenção sobre os Direitos da Criança, art. 1, adotada em 20 de novembro de 1989, 1577 U.N.T.S. 3 (entrada em vigor em 2 de setembro de 1990).  O Brasil ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança em 24 de setembro de 1990.

[7] Ver Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei No. 8.069 de 13 de Julho de 1990, arts. 2, 121.  Ver, de modo geral, Human Rights Watch, “Verdadeiras Masmorras”, págs. 13-16


<<precedente  |  índice  |  seguinte>>junho de 2005