Venezuelanos continuaram enfrentando repressão e uma crise humanitária. Mais 280 prisioneiros políticos estão atrás das grades. Cerca de 19 milhões de pessoas estão em situação de vulnerabilidade, sem acesso adequado à saúde e alimentação. Estima-se que 7,7 milhões de venezuelanos fugiram do país, gerando uma das maiores crises migratórias do mundo.
Em 27 de junho, juízes do Tribunal Penal Internacional (TPI) autorizaram a retomada da investigação de possíveis crimes contra a humanidade na Venezuela. Em setembro, a Missão de Averiguação de Fatos das Nações Unidas (FFM, na sigla em inglês) encontrou graves violações de direitos humanos com os mesmos padrões de conduta classificados anteriormente pela Missão como crimes contra a humanidade.
Diversas ações do governo, como a nomeação de novo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) e a inabilitação de candidatos às eleições presidenciais, ampliaram as preocupações sobre a possibilidade de um processo eleitoral livre e justo.
As negociações entre o governo de Nicolás Maduro e a oposição foram retomadas em outubro de 2023, possibilitando um acordo sobre direitos políticos e garantias eleitorais.
As autoridades têm assediado, perseguido e detido sindicalistas, jornalistas e defensores de direitos humanos, restringindo assim o espaço cívico. Preocupações que persistem incluem a falta de proteção aos povos indígenas, à população LGBT e aos direitos de mulheres e meninas.
Abusos e repressão contra dissidentes
Embora os mesmos padrões de abuso permaneçam, a repressão em larga escala a manifestantes nas ruas tem mudado para formas de repressão aparentemente mais seletivas, como vigilância, assédio e criminalização. Entretanto, conforme constatado pela Missão, o governo Maduro ainda tem a capacidade de recorrer a ferramentas de repressão “linha dura”, como tortura e mortes, para “sufocar a dissidência”.
Mais de 15.800 pessoas foram detidas por motivação política desde 2014 e aproximadamente 270 permaneceram presas, conforme divulgado em outubro pela organização de assistência jurídica Foro Penal. Cinco presos políticos, inclusive o jornalista Ronald Carreño, foram libertados em 18 de outubro após a retomada das negociações entre governo e oposição.
O Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) e a Missão, a despeito da queda nos números, continuaram documentando casos de assassinatos, desaparecimentos forçados de curta duração, prisões arbitrárias, tortura ou maus-tratos, e violência sexual e de gênero contra opositores do governo Maduro.
A Força de Ações Especiais (FAES), uma divisão policial envolvida em sérias violações aos direitos humanos, foi dissolvida em 2022 e substituída pela Diretoria de Ações Estratégicas e Táticas (DAET), após uma ininterrupta pressão internacional. A DAET exerce funções e tem modus operandi semelhantes, sendo que cargos importantes são ocupados por ex-oficiais da FAES que estiveram envolvidos em casos brutais de violações aos direitos humanos, segundo a Missão.
Direito ao voto
A Venezuela teve pouco progresso, se algum, na implementação das recomendações feitas pelos observadores eleitorais da União Europeia em 2021, em antecipação às eleições presidenciais de 2024 e às eleições legislativas e regionais de 2025.
No fim de junho, a Controladoria Geral acrescentou à sua lista de impedimentos eleitorais a inelegibilidade por 15 anos da candidata da oposição María Corina Machado.
O Tribunal Supremo de Justiça continua impondo dirigentes ad-hoc para os partidos da oposição. Em agosto, ordenou novos dirigentes para o Partido Comunista da Venezuela.
Em agosto, a Assembleia Nacional, sob o controle do governo, elegeu todos os novos membros do CNE após a renúncia de membros pró-governo. Entre os novos membros estão Elvis Amoroso, o qual, quando exercia o cargo de controlador geral, inabilitou candidatos de oposição; e Carlos Quintero, alvo de sanções dos Estados Unidos em 2017 por seu papel, como membro do CNE, na deterioração do processo eleitoral.
Em 17 de outubro, governo e oposição chegaram a um acordo para que fossem cumpridos os direitos dos partidos políticos de escolher seus candidatos à presidência e realizar eleições presidenciais no segundo semestre de 2024, junto com outras garantias eleitorais.
Em outubro, partidos de oposição tiveram suas primeiras primárias desde 2012, elegendo Maria Corina Machado como a candidata da oposição às eleições presidenciais. Após alguns dias, a Procuradoria Geral abriu uma investigação contra a comissão organizadora das primárias devido a alegações de fraude, e o Tribunal Supremo de Justiça, alinhado ao governo, suspendeu “todos os efeitos” das eleições primárias.
Independência do poder judiciário e impunidade por abusos
O Judiciário parou de funcionar como um poder independente do governo em 2004. Não tem havido justiça significativa no que diz respeito aos crimes cometidos com o conhecimento ou a aquiescência de autoridades de alto escalão.
Em junho, juízes do TPI concluíram que os tribunais venezuelanos não estão investigando possíveis crimes contra a humanidade na medida da investigação pretendida pelo TPI, dando, assim, um sinal verde para a retomada da investigação. No momento da redação, a decisão estava em fase de recurso.
Em julho, o ACNUDH relatou a existência de “atrasos prologados” na investigação das mortes durante os protestos de 2014, 2017 e 2019. Somente 8 das 101 mortes documentadas pelo escritório ao longo das operações de segurança foram levadas a justiça.
Em setembro, a Missão tinha motivos razoáveis para acreditar que longe de desmantelar as estruturas envolvidas nos abusos, autoridades venezuelanas “promoveram” as pessoas responsáveis por tais abusos.
Emergência humanitária
A HumVenezuela, uma plataforma independente de organizações da sociedade civil monitorando a emergência humanitária, estima que 66 por cento da população venezuelana precisa de assistência humanitária e 65 por cento sofreu “uma perda ou esgotamento irreversível de seus meios de subsistência”.
A Venezuela apresenta a maior prevalência de subnutrição na América do Sul, o Panorama Regional das Nações Unidas sobre Segurança Alimentar e Nutrição reportou em 2022.
Em agosto de 2023, mais de 72 por cento da população não tinha acesso aos serviços públicos de saúde quando necessário, em comparação a 65,5 por cento em julho de 2021. A escassez de medicamentos atingiu o patamar de 26,3 por centro, em agosto de 2023, estimou a organização humanitária Convite. Apesar da redução da escassez, os medicamentos têm custos inacessíveis para muitos.
A falta de energia elétrica e água encanada compromete os hospitais. Infraestruturas deterioradas e a falta de serviços básicos em áreas rurais têm levado pessoas a se mudarem para os centros urbanos.
Devido à doenças e escassez de serviços básicos, alimentação e material escolar, mais de 20 por cento das crianças de 0 a 17 anos encontra-se fora da escola.
Durante a redação deste relatório, a ONU deu sinal verde para a criação de um fundo para assistência humanitária com uso de ativos do Estado congelados no exterior, sob a anuência do governo e da oposição em 2022.
Crise de refugiados
Mais de 7,7 milhões de venezuelanos deixaram o país desde 2014, com cerca de 6,5 milhões realocando-se dentro da América Latina e do Caribe. O número de pessoas cruzando a Região de Darién, uma selva perigosa na fronteira entre a Colômbia e o Panamá, disparou, em parte devido às restrições de visto que efetivamente fecharam as rotas mais seguras. Mais de 440.000 venezuelanos fizeram essa travessia entre janeiro 2022 e outubro de 2023.
Muitos venezuelanos estavam fugindo de duras condições financeiras. Outros de perseguições, inclusive pelas forças de segurança e facções criminosas.
Desemprego ou renda insuficiente, incapacidade de regularizar o refúgio ou a imigração, discriminação e xenofobia fazem com que muitos continuem rumo ao Norte.
Em outubro, os Estados Unidos anunciaram a retomada das deportações diretas de venezuelanos.
Ataques ao espaço cívico e à liberdade de associação
Em 2023, as restrições ao espaço cívico se intensificaram, o que resultou na erosão do direito à liberdade de associação e em restrições indevidas impostas a organizações trabalhistas e da sociedade civil.
Vários sindicalistas têm sido alvos de intimidação, perseguições arbitrárias e detenções. Em 1º de agosto, seis dirigentes sindicais venezuelanos que lideraram protestos por direitos trabalhistas e salários justos foram sentenciados a 16 anos de prisão sob acusações de conspiração e associação criminosa. Relatores especiais das Nações Unidas denunciaram o “emprego crônico indevido de medidas de combate ao terrorismo contra aqueles que defendem os direitos das pessoas trabalhadoras”.
Em 4 de agosto, o Tribunal Supremo de Justiça nomeou um presidente interino para a Cruz Vermelha venezuelana, incumbido de supervisionar a restruturação. Os tribunais criaram diretorias ad hoc para sindicatos, associações nacionais e partidos políticos.
Pessoas defensoras de direitos humanos
Em 24 de janeiro, a Assembleia Nacional avançou um projeto de lei que concede ao Poder Executivo amplos poderes de controle, registro, sanção e dissolução de organizações não governamentais. Em razão disso, ONGs, o ACNUDH, a Missão e relatores especiais da ONU manifestaram preocupação. No momento da redação deste relatório, o projeto de lei estava pendente.
Permanecia também na prisão Javier Tarazona, da ONG Fundaredes, detido em julho de 2021 após expor os vínculos entre as forças de segurança e grupos armados venezuelanos.
Liberdade de expressão
As autoridades estigmatizaram, assediaram e reprimiram a imprensa, fechando veículos dissidentes. O medo de represálias leva à autocensura. Em setembro, a organização da sociedade civil Espacio Público relatou 261 violações de liberdade de expressão em 2023, sendo a censura e a intimidação as mais comuns.
Em janeiro, o diretor do jornal El Nacional, Miguel Otero, reportou que o jornalista José Gregorio Meza havia sido preso e que outros quatro jornalistas do veículo receberam uma intimação para testemunhar sobre “certos trabalhos publicados pelo meio de comunicação”.
Grupos armados
Grupos armados – incluindo o Exército de Libertação Nacional (ELN), as Forças Patrióticas de Libertação Nacional (FPLN) e grupos dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) – operam principalmente em estados fronteiriços, impondo com brutalidade toques de recolher e regras para atividades cotidianas.
A Fundaredes relatou em 2023 que grupos armados e facções criminosas estão expandindo a extorsão nas fronteiras com a Colômbia, ameaçando a vida e as propriedades de civis.
Os direitos dos povos indígenas e a mineração
A mineração é uma dos principais vetores de desmatamento na Amazônia venezuelana. Organizações ambientais e de direitos humanos acusam as forças de segurança de colaborar com garimpeiros ilegais, inclusive fornecendo mercúrio para a mineração de ouro, além de suspeitas de ataques indiscriminados a civis com uso desproporcional da força.
Em setembro, soldados entraram em confronto com supostos garimpeiros ilegais no parque nacional de Yapacana, resultando em duas mortes e seis pessoas feridas.
Jornalistas e a organização SOS Orinoco denunciaram que os povos indígenas vivendo perto de minas de ouro estão sofrendo intoxicação grave por mercúrio. Alguns foram deslocados à força.
Orientação sexual e identidade de gênero
A Venezuela não possui uma legislação abrangente que proteja as pessoas contra a discriminação com base na orientação sexual e na identidade de gênero.
Em março, o Tribunal Supremo de Justiça descriminalizou as relações consensuais entre militares do mesmo sexo.
Em 23 de julho, a polícia fez uma incursão em um clube frequentado por pessoas LGBT e prendeu 33 pessoas sob a acusação de poluição sonora e atentado ao pudor. Trinta receberam “liberdade condicional” após 72 horas e três foram liberadas 10 dias depois. Ativistas acusaram as autoridades de “criminalizar” as pessoas por sua orientação sexual.
Direitos de pessoas com deficiência
A lei venezuelana proíbe a discriminação contra pessoas com deficiência e exige que parques e edifícios públicos sejam acessíveis, entretanto, ainda há preconceito e acesso limitado ao transporte público, incluindo motoristas que não querem transportar pessoas com deficiência. O acesso a serviços públicos de saúde para pessoas com deficiência é difícil e os serviços privados têm preços inacessíveis.
Direitos das mulheres e meninas
O aborto é criminalizado, exceto quando a vida da gestante está em risco.
Os serviços de saúde sexual e reprodutiva para mulheres e meninas sofrem uma redução de capacidade, segundo a HumVenezuela. Os preços de contraceptivos e de produtos de higiene são inacessíveis.
A Venezuela tem uma alta taxa de mortalidade materna, com 125,4 mortes maternas por 100.000 nascidos vivos, além de uma elevada taxa de gravidez na adolescência, com 97,7 por 1.000 mulheres entre 15 e 19 anos de idade, de acordo com o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA ).
A Venezuela carece de “regulamentações e protocolos sensíveis ao gênero para implementar a Lei Orgânica sobre o Direito das Mulheres a uma Vida Livre de Violência”, afirmou a Comissão das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher da ONU em maio.
O Observatório de Feminicídios da ONG Centro de Justiça e Paz (Cepaz) documentou 160 feminicídios e 93 tentativas de feminicídio entre janeiro e julho. Dados oficiais sobre feminicídios não são divulgados desde 2016.
Principais atores internacionais
Depois de sua visita à Venezuela em janeiro, o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos apontou desafios nas “esferas civil, política, econômica e social”. O Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (ENUCAH), que supervisiona o trabalho humanitário da ONU na Venezuela, estima que 7 milhões de venezuelanos em território nacional e 6,5 milhões no exterior precisam de assistência.
Além de observar casos de tortura e atrasos nas investigações, o ACNUDH sinalizou ao Conselho de Direitos Humanos que detenções ilegais e arbitrárias, restrições ao espaço cívico, obstáculos à livre participação em assuntos políticos e desafios econômicos e sociais têm contribuído para a emergência humanitária.
Em junho, dias antes da decisão do TPI sobre a retomada da investigação de supostos crimes contra a humanidade, o procurador do TPI visitou a Venezuela e firmou um memorando de entendimento com Maduro, concordando em criar um escritório no país.
Em setembro, a Missão lançou seu quarto relatório e concluiu que, embora o Estado tenha adotado táticas coercitivas menos ostensivas, ele ainda possui a capacidade de recorrer a medidas severas para suprimir a dissidência, logo, o escrutínio internacional deve persistir.
O Brasil convidou Maduro para uma reunião de líderes sul-americanos em maio. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a democracia está prosperando na Venezuela, chamando o enfraquecimento das instituições democráticas do país de uma “narrativa construída”. As observações do presidente do Brasil geraram reações negativas de ONGs locais e internacionais.
O presidente colombiano Gustavo Petro organizou uma cúpula internacional em Bogotá, em abril, com o objetivo de reacender as negociações entre o governo venezuelano e a oposição.
Em Bogotá, em abril, e durante a Cúpula CELAC-UE, em julho, o Alto Representante da União Europeia para Relações Exteriores, Josep Borrell, reiterou a necessidade de implementar as recomendações da Missão de Observação Eleitoral da União Europeia. Em conjunto com os presidentes da Colômbia, Brasil, Argentina e França, ele encorajou a retomada das negociações e manifestou seu apoio ao levantamento das sanções contra a Venezuela se eleições transparentes e inclusivas forem realizadas em 2024. Ainda em julho, o Parlamento Europeu condenou veementemente a inabilitação de candidatos.
Em julho, um promotor argentino abriu uma investigação sobre possíveis crimes contra a humanidade na Venezuela, após uma queixa criminal apresentada pela Clooney Foundation for Justice com base no princípio da jurisdição universal.
Em 8 de agosto, durante o primeiro dia da Cúpula da Amazônia, a Venezuela, juntamente com outros sete países da Amazônia, assinou a Declaração de Belém, estabelecendo uma agenda conjunta para proteger o ecossistema amazônico.
Em outubro, logo após o acordo entre governo e oposição, os Estados Unidos aliviaram algumas sanções com a concessão de licenças de seis meses relacionadas ao setor de gás e petróleo da Venezuela. O não cumprimento dos termos do acordo fará com que os EUA “revertam” essas licenças.
Em novembro, o Conselho da União Europeia decidiu prorrogar suas medidas restritivas, incluindo proibições de viagens e congelamento de bens de indivíduos, por seis meses (até 14 de maio de 2024) em vez de um ano.