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VI. ASSISTÊNCIA ÀS CRIANÇAS

Para a proteção das crianças, as ferramentas já existem. Foram ratificados os tratados internacionais. O Código da Família e a legislação nacional são progressistas. Angola incorporou à legislação nacional os princípios norteadores relativos a pessoas deslocadas dentro do próprio país. O Governo tem que agir conforme suas próprias declarações, cumprir os compromissos assumidos e atender à sua população.

-Consultor de Direitos das Crianças, 26 de novembro de 2002.

A reconstrução de um país assolado por quase quatro décadas de conflito contínuo será um enorme desafio. Grande parte da infra-estrutura de Angola está arruinada, escolas, centros de saúde e lares foram destruídos, e um número imenso de vidas perdidas. Milhões de angolanos terão que se reinstalar em comunidades, perdoar seus vizinhos e reconstruir suas vidas. Torna-se necessário um planejamento cuidadoso por parte do Governo e o aumento dos serviços sociais para se criar um futuro estável para a população. Além disso, Angola comprometeu-se por convenção internacional a instalar progressivamente a educação primária e obrigatória para todos, e o mais alto padrão de saúde alcançável.

Em contraste com muitos países da África, Angola tem como cumprir tais obrigações. As reservas de petróleo são consideráveis e o país poderia produzir tanto quanto o Kuwait durante a próxima década. O governo depende enormemente das receitas do petróleo que chegam a mais de 3 bilhões de dólares por ano, sendo responsáveis por cerca de 75% da receita total arrecadada pelo governo e por 30% do produto interno bruto (PIB).66 Com abundantes depósitos de diamante e outros minerais, a paz em Angola significa que a extração destes recursos pode trazer recursos adicionais ao governo e, eventualmente, à sua população.

Muito pouco foi gasto em saúde e educação nos últimos quatro anos do conflito. Apesar do Parlamento ter considerado, em dezembro de 2002, que estas duas áreas tinham prioridade de investimento, muito ainda depende da definição do governo do montante deste investimento e de que parcela dele seria dirigida às províncias.67 É preocupante o fato do FMI ter constatado que 908 milhões de dólares, ou 10% do PIB, não foram contabilizados em 2001. Talvez ainda mais preocupante é o FMI não ter conseguido estabelecer quanto foi gasto em saúde e educação nesse mesmo ano porque o governo não quis ou não pôde disponibilizar tal dado. No entanto, para os anos de 1997 a 2000, o FMI relatou que os gastos em saúde e educação foram em média de cerca de 4% do PIB, enquanto que, para o mesmo período, o montante médio não contabilizado foi de aproximadamente 12% do PIB.68

Como a maioria da população de Angola tem menos de 18 anos de idade, é preciso dar prioridade aos investimentos governamentais no bem-estar das crianças: escolas, atendimento de saúde, programas de acompanhamento do paradeiro, reabilitação. É preciso estabelecer programas de ajuda a crianças ex-combatentes para oferecer maiores oportunidades àquelas que lutaram por seu país. Mas estes programas têm que ser adaptados às necessidades das comunidades onde estas crianças continuarão a viver. Os programas mais abrangentes, que cobrem a reabilitação social e a coesão comunitária, constituem a melhor solução à integração pacífica das crianças ex-combatentes.

As agências internacionais que trabalham em campo já forneceram alguma assistência parcial na reabilitação de crianças-soldados. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha realiza buscas destas crianças com o fim de reuni-las com suas famílias. A Cruz Vermelha Espanhola criou programas para dar treinamento e assistência técnica a crianças-soldados em algumas províncias. O Escritório do Representante Especial da Secretaria-Geral para Crianças e Conflitos Armados indicou um consultor sobre proteção de crianças para trabalhar com o Governo de Angola durante um período de seis meses em 2002.

Uma reunião realizada ao final de dezembro de 2002 em Luanda sobre Estratégias de Proteção de Crianças foi um passo positivo para as crianças de Angola. Organizada com membros do Ministério da Assistência e Reinserção Social (MINARS), agências da ONU, ONG's locais e internacionais, e participantes da sociedade civil, os grupos reunidos discutiram, entre outros temas, a necessidade de reabilitação das crianças-soldados. Este tipo de ação para tratar de questões relacionadas à proteção das crianças, permitindo reunir diferentes partes interessadas nos direitos das crianças, foi considerado essencial no estabelecimento de programas dirigidos às crianças-soldados, após o Protocolo de Lusaka.69

À reunião inicial sobre proteção seguiu-se uma discussão em mesa redonda, em março de 2003, bem como o compromisso pelos participantes de levar a cabo sua implementação. Declarou-se que uma estratégia de reabilitação na própria comunidade e a reunificação familiar era preferível ao programa formal de desmobilização das crianças, o qual identificava rapazes e moças como soldados, pois "o rótulo de crianças-soldados e a concessão aos mesmos de pacotes de benefícios de desmobilização leva à sua estigmatização no interior das comunidades."70 Tal ênfase na reabilitação baseada na família e na comunidade e a atitude de evitar o estigma negativo a longo prazo são essenciais para as crianças ex-soldados e suas comunidades. Mas corre-se o risco de não identificar muitas moças e rapazes que pegaram em armas e de ignorar suas necessidades especiais, porque não existem programas planejados e adaptados aos seus requisitos específicos de reabilitação.

Ao falar sobre as áreas de agrupamento, um funcionário da UNICEF declarou: "Dentro dos acampamentos, todas as crianças recebem orientação e não só os soldados menores de idade."71 No entanto, as crianças ex-combatentes entrevistadas para a preparação deste relatório, tanto rapazes e moças em algumas das áreas de agrupamento mais acessíveis, foram unânimes em declarar (em dezembro de 2002) que até então nunca tinham recebido qualquer tipo de orientação. Em seu relatório sobre as lições aprendidas com a desmobilização de crianças-soldados, e levando em consideração exemplos passados, inclusive em Angola, Beth Verhey argumenta que em qualquer processo de desmobilização, "as necessidades especiais de crianças-soldados nos programas de desmobilização [são] vitais".72 Sua visão foi resumida em outros trabalhos sobre as melhores práticas de prevenção de conflitos e reconstrução. "As crianças-soldados geralmente querem ser reconhecidas e incluídas em programas formais de desmobilização. Quando são excluídas, o ressentimento e a sensação de abandono levam algumas a retornar à violência como forma de melhorar suas vidas. Para outras, o reconhecimento tem um importante papel. . . protegendo-as de novo recrutamento."73 O Estudo de 1996 das Nações Unidas sobre o Impacto de Conflitos Armados sobre Crianças, Relatório da Perita da Secretaria-Geral, Sra. Graça Machel, também recomenda o reconhecimento formal das crianças-combatentes. "O reconhecimento oficial da participação de crianças em uma guerra é um passo essencial. . . sem este reconhecimento não pode haver um planejamento ou programação realmente eficazes."74 Estas opiniões, baseadas em exemplos passados de Angola e de outros países, questionam a viabilidade da atual estratégia de reabilitação.

O Banco Mundial está propondo uma iniciativa de U.S.$180 milhões para dar assistência e reintegrar ex-combatentes da UNITA e das FAA em suas comunidades. Conhecido como o Programa de Desmobilização e Reintegração de Angola (PDRA), esta iniciativa inclui uma verba de US$33 milhões aprovada pelo Banco em março de 2003.75 Apesar do PDRA especificar que os combatentes menores de idade deverão receber assistência sob a forma de auxílio em casos de trauma e atendimento psicossocial, ele não faz nenhuma referência nem à forma de identificação destas crianças, nem à existência de moças soldados. No Apêndice Técnico do PDRA, o Banco demonstra seu reconhecimento de que, como as crianças-soldados não foram registradas nas áreas de agrupamento, o número proposto de beneficiários é desconhecido. A identificação de crianças-soldados nas áreas de agrupamento e transferência antes que estas sejam fechadas, e a informação sobre seu paradeiro depois que deixam os acampamentos pode ser a única forma de garantir que estas crianças recebam a assistência proposta no futuro. Também problemática é a afirmação no Apêndice Técnico de que "as FAA assumiram a responsabilidade primária pelo processo de desmobilização. . . . e são elas as responsáveis por registrar, fazer a triagem e emitir documentos de identidade militar aos ex-combatentes que devem ser desmobilizados."76 No entanto, os rapazes e moças combatentes foram deixados à margem do processo de desmobilização e, a depender-se somente das FAA como responsáveis únicos pela implementação da desmobilização, corre-se o risco de que as crianças sejam novamente deixadas à margem do processo.

Os elementos necessários para criar e sustentar programas voltados a crianças-soldados já existem em Angola. Uma parcela substancial dos fundos resultantes da iniciativa e verbas do Banco Mundial poderia ser canalizada para dar assistência às crianças combatentes. O grupo organizado de proteção das crianças poderia fornecer a assistência técnica e profissional necessária para implementar corretamente os programas. No entanto, este tipo de cenário somente pode ter sucesso se houver um forte interesse e compromisso por parte do governo. O investimento em crianças e em suas comunidades por parte do governo é essencial para equilibrar as necessidades das crianças-soldados com as de todas as crianças e grupos vulneráveis de Angola.

66 Fundo Monetário Internacional, Angola: Recent Economic Developments [Angola: acontecimentos econômicos recentes], Relatório de País do Corpo Técnico do FMI No. 00/111, Agosto de 2000; Fundo Monetário Internacional, Angola: Staff Report for the Article IV Consultation [Angola: Relatório do Corpo Técnico sobre Consulta do Artigo IV], 18 de março de 2002, págs. 28-33 (cópia arquivada em Human Rights Watch).

67 Agência de Imprensa de Angola, Aprovado Orçamento do Estado em 2003, 19 de dezembro de 2002 [online]. http://allafrica.com/angola/200212190593.html (consultado em 20 de dezembro de 2002).

68 Fundo Monetário Internacional, Angola: Staff Report [Angola: Relatório do Pessoal], págs. 28-33.

69 Agência de Imprensa de Angola, Continua Reunião de Estratégia de Proteção de Crianças, 17 de dezembro de 2002 [online], http://allafrica.com/angola/200212170632.html (20 de dezembro de 2002).

70 Notas do Noticiário do Fundo das Nações Unidas para a Infância, "A New Phase in Action for Separated Children and Child Soldiers in Angola" [Uma nova fase das ações voltadas às crianças separadas e crianças-soldados em Angola], Luanda, Angola, 7 de março de 2003.

71 Rede Integrada de Informação Regional (IRIN), "Angola: Reintegration of Child Soldiers Underway" [Angola: reintegração de crianças-soldados em curso"], 15 de janeiro de 2003.

72 Beth Verhey, "Child Soldiers Preventing, Demobilizing and Reintegrating" [Crianças-soldados: prevenção, desmobilização e reintegração], novembro de 2001, pág. 7.

73 Unidade de Prevenção de Conflitos e Reconstrução, Departamento de Desenvolvimento Social, "Child Soldiers: Prevention, Demobilization and Reintegration" [Crianças-soldados: prevenção, desmobilização e reintegração], Rede de Desenvolvimento Ambiental e Socialmente Sustentável do Banco Mundial, maio de 2002, pág. 2.

74 Nações Unidas, Promotion and Protection of the Rights of Children Impact of Armed Conflict on Children [Promoção e proteção dos direitos das crianças, impacto do conflito armado sobre as crianças] (Nova York: Publicação das Nações Unidas, 26 de agosto de 1996), A/51/306, pág. 19.

75 Banco Mundial, Technical Annex for a Proposed Grant of SDR 24 Million (U.S.$ 33 Million Equivalent) to the Republic of Angola for an Angola Emergency Demobilization and Reintegration Project [Apêndice técnico de proposta de verba de SDR$24 milhões (equivalente a U.S.$33 milhões) para o projeto de desmobilização e reintegração de emergência em Angola] (Documento do Banco Mundial: Relatório No. T7580-ANG, 7 de março de 2003), pág. 37.

76 Ibid., págs. 19, 31-32 e 42.

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