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V.  Espancamentos e punições coletivas

“Nos batem.  Nos batem com madeira”, disse imediatamente Carlos P., de 16 anos, no Santo Expedito, assim que sentou para conversar conosco.  Quando nosso representante perguntou a ele quem o havia espancado, ele respondeu: “Os agentes”.56

Ouvimos relatos similares de outros jovens que entrevistamos sobre suas experiências no Santo Expedito e no Padre Severino.  Quando perguntamos a Marcos G., 17 anos, se ele se sentia seguro no Santo Expedito, ele respondeu: “Sinto nada.  Batem na gente toda hora.  Em Padre também.  Leva um esporro logo quando chega.”57

Anderson F., 17 anos, contou-nos que foi espancado no Padre Severino nove dias antes de o entrevistarmos em maio de 2005.  “Um funcionário desses me arrebentou lá.  Vê esse olho roxo?”, disse, indicando uma contusão roxa abaixo do olho direito.  E continuou: 

Esta marca é de lá . . .  Távamos jogando um jogo, acharam que nós estávamos sacaneando.  Já era a hora de apagar a luz lá e eles tavam fazendo um churrasco lá fora. . . .  Naquela hora não podia mais barulho. . . .  Ai me pegaram que eu estava naquele grupo e me deram uns tapa na cara.58

Silvia R., mãe de Marcos R., de 17 anos, viu um agente golpear um outro jovem quando ela visitava seu filho no Padre Severino em maio de 2005.  “Eu vi um adolescente tomar dois tapas na hora da visita, na frente de todo mundo inclusive da mãe dele”, ela disse.  Em seguida, explicou:

Os adolescentes estavam discutindo de boca.  Ai uma agente [feminina] deu dois tapas, tapas mesmo com mão aberta e forte, nas costas de um.  Para o outro ela virou e falou ‘depois vamos conversar.’  Na hora eu ia me levantar para reclamar mas meu filho me pediu ‘mãe não faça isso que eu vou apanhar também’.

Perguntamos a ela se já tinha presenciado uma situação como essa em outras visitas.  “Sim”, respondeu.  “De vez em quando via um adolescente ser levado pra dentro por um agente.  Quando voltava estava com machucado na cabeça e falava que tinha caído.  Não tinha caído nada.”59

Outros pais relataram que os agentes do Padre Severino espancavam seus filhos. Por exemplo, o filho de Cristiane B. disse a ela que os agentes o tinham espancado.  “Ficava com aquelas manchas roxas.  Mas não dava na hora da visita para levantar as roupas deles para ver.  Se não eles apanhariam ainda mais lá dentro.”60

Ouvimos relatos de espancamentos também no CAI-Baixada.  “No CAI eu apanhei também mas menos que no Padre”, André S. nos disse.  “Só tomei lá um tapa nas costas.”61  Em contraste, as jovens que entrevistamos no Santos Dumont contaram-nos que nunca tinham visto ou ouvido falar de espancamentos naquele centro de internação.62

Golpes fortes com a mão aberta foram o método usado mais comumente, como nos disseram os jovens.   “Muitos tapas na cara”, relatou João T., 17 anos.  “Vi chute também, eles chutando outros.  Tapa no peito também.”63   Os agentes do Padre Severino e do Santo Expedito também agrediram os jovens com porretes de madeiras, alguns dos quais até recebiam nomes especiais.  Como nos disse André S.:

No Padre tinha a famosa Kelly Key.  Um pedaço de madeira grande, ruim de quebrar.  Quando tirava ela aí todo mundo ficava quieto.  Também tinha a Thundercat, uma perna de três assim, enorme.  A espada de Thundercat.  Aqueles cabos de enxada, maiorzinho assim.  Eles batiam com isso também.  Dão tapas no peito e na cara.  Bate na cara mesmo. 64

“Ficou inchado aqui”, ele acrescentou, mostrando o braço.  Ele foi golpeado duas vezes na cabeça em outra ocasião, ele disse.65  Seu relato não foi a primeira vez que ouvimos falar do uso da “Kelly Key”; em novembro de 2004, a organização não governamental Projeto Legal informou que um agente no Padre Severino tinha golpeado um jovem usando “um porrete chamado ‘Kelly Key.’”66 

Quando os agentes do Padre Severino e Santo Expedito agrediam os jovens, a razão era freqüentemente porque os últimos não tinham obedecido a certas regras arbitrárias.  No Padre Severino, por exemplo, André S. nos contou:

Tinha que comer rápido.  Não podia um terminar antes, senão os que não terminavam apanhavam.  E nada de fala.  Abaixe a cabeça e fique quieto.  Se falá, já era.  Eu vi um agente batê o queixo de um menino na mesa.67

Outros casos de violência carecem até de uma tentativa de justificativa.  Por exemplo, Silvia R. contou-nos que um agente atirou artigos de banheiro sobre seu filho.  Ela explicou como isso aconteceu:

Mas lá eles são numerados, né?  Ai o meu filho era novo lá, não sabia direito, então ele não sabia que normalmente eles gritam os números deles e jogam as entregas dentro das celas.  Na hora o meu filho chegou na porta da cela pensando que ele tinha que receber na mão.  O agente jogou o sabonete no rosto do meu filho.  Na visita eu vi que ele ficou com galo na sobrancelha. 68

Também ouvimos relatos de que os agentes espancam os jovens depois de provocá-los com insultos.  No Padre Severino, por exemplo, “eles têm essa mania.  Sabem que a nossa mãe é sagrada.  Eles ficam xingando a mãe.  Daí um colega fala alguma coisa e daí leva tapa na cara.” 69

Os agentes espancavam às vezes como uma punição coletiva.  Por exemplo, João T., de 17 anos, assim descreveu a época em que estava no Padre Severino: “Lá [em Padre Severino] quando eles vêm bater numa cela, eles batem em todos, não só aqueles que fizeram alguma coisa e isso é errado.  Numa cela, se alguém fazer bagunça, todos pagam.”70  Outros contaram experiências semelhantes.  Conta André S.: “No Padre, se um faz, todos pagam.  Apanhei por causa de um.  Se um aprontava, todos pagavam.”71  Diz Anderson F., num relato similar: “No Padre, um dá motivo, mas todo pagam.  Não tem dessa não de alguém assumi então só aquele apanha.” 72

Marcos G. descreveu assim um caso recente de punição coletiva no Santo Expedito:

Teve um dia, faz pouco tempo, que prenderam todos aqui.  Bateram em todo mundo, todos da galeria.  Só quando aqueles assumiram, aí parou. . . .  Mas eu não tinha nada a ver com isso não.  Mesmo assim nós ficamos presos um dia numa sala, sem água, sem comida, sem nada.  Mais ou menos uns quatorze de nós.  Ficamos lá um dia.  Deu para almoçar e jantar só depois de muito tempo.  No começo não tinha lugar pra ir ao banheiro, ai depois de muito tempo eles nos levaram pra ir. . . .  Aqueles que assumiram foram levados para o juizado de novo, CTR, tudo isso.  Passaram pelo sistema de novo. 73

André S. contou-nos inicialmente que os agentes não aplicavam punições coletivas no CAI-Baixada.  “Lá [no CAI] só aqueles que fizeram pagam”, disse ele.  Mas, mais tarde, na entrevista, ele acabou admitindo que a punição em grupo aconteceu também ali.  Ele explicou uma situação típica em que poderia ocorrer um espancamento:

Por exemplo, se tinha um falatório as 10 horas da noite, aí eles tiravam só aquele que estava falando pra salinha.  Tinha uma salinha onde [as pessoas] apanhavam, entre as salas individual e a enfermaria e área de triagem aonde ficavam os mais rebeldes.  Se ninguém assumia aí tiravam todos e dava uns tapa no peito.74

Foi-nos dito que o confinamento prolongado na cela é usado também como punição de grupo.  Maria N., 16 anos, do Santos Dumont, contou-nos que quando alguém faz algo errado, “todas nós somos trancafiadas por dois dias, às vezes três”.75 

Nem é preciso lembrar que a legislação brasileira e internacional proíbe os agentes de espancarem crianças e adolescentes em detenção.76  As normas internacionais também recomendam a proibição das punições coletivas.77  De modo mais geral, as normas internacionais somente permitem às autoridades o uso da força em casos muito restritos, por exemplo, para evitar que um jovem fira a si próprio ou a outros ou que cause danos graves a propriedades.  Mesmo assim, o uso da força deve ser limitado a casos excepcionais, depois que todos os outros métodos já tenham sido tentados; o uso da força nunca deve causar humilhação ou degradação.  Finalmente, as autoridades dos centros de internação devem sempre informar aos familiares sobre quaisquer ferimentos que os jovens sofram como resultado do uso de força, devendo fazê-lo imediatamente se o uso da força resultar em ferimentos graves ou morte. 78


Grande parte do Santo Expedito foi destruída num incêndio em novembro de 2002, provocando um caso extremo de superlotação no resto das instalações, conforme constatado pela Human Rights Watch em sua visita de julho de 2003.
(c) 2003 Michael Bochenek/Human Rights Watch.

 

Quando a Human Rights Watch voltou ao Santo Expedito em maio de 2005, as partes destruídas tinham sido renovadas mas não eram mais usadas para alojamento. Uma área que antes concentrava 45% das celas do centro de internação, agora abrigava uma operação de reciclagem de garrafas e escritórios administrativos.
(c) 2005 Michael Bochenek/Human Rights Watch.




[56] Entrevista da Human Rights Watch com Carlos P., Educandário Santo Expedito, 23 de maio de 2005.

[57] Entrevista da Human Rights Watch com Marcos G., Educandário Santo Expedito, 23 de maio de 2005.

[58]  Entrevista da Human Rights Watch com Anderson F., Educandário Santo Expedito, 23 de maio de 2005.

[59] Entrevista da Human Rights Watch com Silva R., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[60] Entrevista da Human Rights Watch com Cristiane B., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[61] Entrevista da Human Rights Watch com André S., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[62] Entrevista da Human Rights Watch com Maria N., Educandário Santos Dumont, 12 de maio de 2005.

[63] Entrevista da Human Rights Watch com João T., João Luiz Alves, 12 de maio de 2005.

[64] Entrevista da Human Rights Watch com André S., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.  Kelly Key é uma cantora pop brasileira; Thundercat é uma personagem de desenho animado. 

[65] Entrevista da Human Rights Watch com André S., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[66] Ver Projeto Legal, “‘Kelly Key’ continua em ação no Padre Severino,” novembro de 2004, pág. 1.

[67] Entrevista da Human Rights Watch com André S., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[68] Entrevista da Human Rights Watch com Silvia R., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[69] Entrevista da Human Rights Watch com André S., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[70] Entrevista da Human Rights Watch com João T., João Luiz Alves, 12 de maio de 2005.

[71] Entrevista da Human Rights Watch com André S., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[72] Entrevista da Human Rights Watch com Anderson F., Educandário Santo Expedito, maio de 2005.

[73] Entrevista da Human Rights Watch com Marcos G., Educandário Santo Expedito, 23 de maio de 2005.

[74] Entrevista da Human Rights Watch com André S., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[75] Entrevista da Human Rights Watch com Maria N., Educandário Santos Dumont, 12 de maio de 2005.

[76] Ver, por exemplo, a Constituição da República Federativa do Brasil, Art. 5(III) (“ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”); e a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotadas em 10 de dezembro de 1984, 1465 U.N.T.S. 85 (entrada em vigor em 26 de junho de 1987 e ratificada pelo Brasil em 28 de setembro de 1989), art. 16.

[77] Regras da ONU para a Proteção de Jovens Privados de sua Liberdade, G.A. Res. 45/133 (1990), art. 67.

[78] Ver ibid., arts. 64, 56.


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