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VI.  Condições de detenção

Cometeram delito, tudo bem.  Deveria ter um apoio na primeira instância, não botar preso, não ficar sem chamar a família.  A pessoa não vai endireitar no Padre Severino.  O problema de maconha, ele pegou esse hábito lá dentro.  O meu filho voltou cheio de raiva, de agressão, sem nenhum apoio.79
—Neusa M., cujo filho encontrava-se interno em 2004.

Em dezembro de 2004, quando a Human Rights Watch divulgou seu último relatório sobre a internação juvenil no Rio de Janeiro, o diretor geral do DEGASE, Sérgio Novo, declarou à imprensa estar “indignado” com nossas conclusões, as quais ele descreveu como “uma injustiça”.  “Eles mostram uma realidade que é completamente diferente da que temos hoje”, declarou ele à Folha de S. Paulo.80  Na verdade, nossa revisão dos centros de internação juvenil do Rio de Janeiro, seis meses depois, constatou que muito pouco mudou.  Na verdade, as condições de internação pioraram em vários aspectos importantes.

O Educandário Santo Expedito é um desses casos.  Quando o visitamos em julho de 2003, havia aí 181 jovens, 9% a mais do que sua capacidade oficial de 166.  Quando voltamos em maio de 2005, esse número havia aumentado para 207 jovens, 24% a mais do que a capacidade máxima para a qual havia sido projetado.  Em ambas as ocasiões, observamos que sua capacidade real é de apenas 90 internos, porque blocos inteiros de celas haviam sido destruídos em um incêndio de novembro de 2002 e não foram reparados até 2004, não estando portanto disponíveis atualmente para abrigar os internos.  A única possível melhoria eram as novas camadas de tinta nas barras das portas que levam a cada bloco de celas, agora amarelas ao invés do azul que já se encontrava sujo e descascado, e na quadra de basquete.

A superlotação é também a regra na maioria dos outros centros de internação.  O CAI-Baixada opera atualmente a 179% de sua capacidade.  O Padre Severino está a 175% de sua capacidade.  O Santos Dumont não estava cheio à plena capacidade quando o visitamos, mas autoridades desse centro nos confidenciaram que ele periodicamente atinge 150% da capacidade.  Somente o João Luiz Alves, o mais próximo que o Rio de Janeiro tem de um centro adequado de internação, abriga continuamente menos jovens do que o limite para o qual foi projetado. 

A sordidez e a miséria continuam a ser a ordem do dia.  As celas estão imundas, escuras  e infestadas de vermes.  Às vezes, os internos usam uma única muda de roupa por uma semana inteira.  Nem sempre eles têm acesso a sabão e pasta de dente, particularmente no Padre Severino.  A falta de colchões e roupa de cama é comum e os níveis extremos de superlotação significam que os jovens têm freqüentemente que dividir as camas entre si.  Não causa surpresa, portanto, a proliferação de sarna e outras doenças contagiosas nessas condições.

Todos os centros de internação do Rio de Janeiro encontram-se dilapidados e em necessidade extrema de reparos, mas ouvimos reclamações particulares sobre o Santos Dumont, centro de internação feminino.  Quando visitamos o centro, um agente comentou: “O que é ruim aqui são os alojamentos.  Olhe.  Tudo molhado, cheiro de mofo.  Realmente eles tem que refazer tudo isso ai.”81  André Hespanhol, advogado da organização não governamental Projeto Legal, concordou com a avaliação feita pelo agente: “Lá o que é problemático mesmo são os alojamentos.  São horríveis.  E precisa de tanta pouca coisa para melhorar.  Uns R$20.000 [U.S.$8.300] daria para refazer tudo aquilo.” 82

A qualidade e quantidade da comida era um problema na maioria dos centros, sendo as reclamações mais contundentes as feitas sobre o Santo Expedito.  “Aqui a comida é muito ruim.  Aquela carne estragada”, disse-nos Marcos G. “Outro dia achei um bicho dentro da minha comida. . . . Tapuruca branco.” 83

Os jovens de todas as unidades que visitamos informaram que estavam agora freqüentando as aulas, mas não foi isto que aconteceu durante a maior parte de 2005.  Como descrito na seção anterior, as aulas foram suspensas a partir de janeiro no CAI-Baixada, Padre Severino e Santo Expedito devido a uma deficiência aguda em número de agentes e outros funcionários.  A instrução escolar reiniciou-se no Santo Expedito apenas uma semana antes da nossa visita, de acordo com a Defensoria Pública.84

A deficiência de pessoal também significou uma redução muito forte das atividades de recreação e outras atividades, ou seja, os jovens agora passam a maior parte do tempo trancafiados em suas celas.  Marcos G. informou que quando estava interno no Padre Severino, “só usávamos a quadra de vez em quando. . . .   Lá ficava o tempo todo preso.  Fedendo pra caramba.  Não tinha nada pra fazer”85  O mesmo acontece no CAI-Baixada, de acordo com uma ação movida pela Defensoria Pública em março de 2005 relativa às condições prevalentes naquele centro.86

A intenção da internação juvenil é a de servir para fins de recuperação dos jovens.  No Rio de Janeiro, ela não atende a este propósito, como também não fornece as condições básicas de dignidade e humanidade.  “Os meninos merecem castigo porque tão errados”, disse Silvia R., mãe de um jovem de 17 anos interno no Padre Severino até maio de 2005, “mas também não tem que ser tratados como bichos”.87

Superlotação

A superlotação é particularmente grave no CAI-Baixada, Padre Severino e Santo Expedito, como mostra o gráfico abaixo.  Tanto o CAI-Baixada como o Padre Severino detinham mais de 175% de sua capacidade máxima durante a semana de 16 de maio de 2005, informou o DEGASE.  O Santo Expedito estava com 124% de sua capacidade máxima na mesma semana.88

A situação é ainda mais grave no Santo Expedito do que esses dados deixam transparecer. Sua capacidade oficial de 166 internos não reflete o fato de que muitos dos seus blocos de celas foram convertidos a outros usos.  Em nosso relatório de dezembro de 2004, notamos que vários prédios foram destruídos em grande parte durante um incêndio de novembro de 2002; esses prédios não tinham sido reparados quando visitamos o local em julho de 2003.  Quando voltamos ao centro em maio de 2005, esperávamos ver essas áreas reconstruídas, o que diminuiria a pressão sobre os blocos de celas.  Constatamos que os prédios tinham sido reparados, mas são agora usados como centro de reciclagem, o que significa que todos os jovens continuam a se apertar em blocos de celas de um único prédio.  Com base em nossas discussões com o pessoal do centro de internação e nossa inspeção do centro, estimamos que a verdadeira capacidade do Santo Expedito seja de 90 internos ao invés de 166.  Com 207 jovens internos no dia da nossa visita, isto representa 230% de sua capacidade real.

A superlotação do Santo Expedito é tamanha que os internos têm que dividir as camas entre si ou dormir no chão.  Anderson F., interno do Santo Expedito, com 17 anos, explicou: “Fica alguns no chão, outros em cima [na cama].  Ai dorme um com a cabeça pra lá e outro com a cabeça pra cá”, para poderem se encaixar numa só cama.89 





O Santos Dumont tinha 33 jovens internas quando visitamos as instalações em maio de 2005, ou seja, 7 abaixo de sua capacidade oficial de 40 internas.  No entanto, este centro frequentemente encontra-se superlotado.  Um agente nos disse: “Agora está okay porque tem, o que, 20 aqui, então tem cama pra todo mundo.  Difícil é quando tem 50 ou 60.  Ai tem que botar 2 numa cama ou até algumas no chão.”90

Condições de vida

Os centros de internação do Rio de Janeiro não atendem às normas básicas de saúde e higiene.  Os centros de internação relatam falta de sabão e artigos de higiene pessoal; em alguns deles, os jovens usam a mesma muda de roupa durante uma semana inteira antes desta poder ser lavada.

Os jovens que entrevistamos fizeram críticas particularmente às condições anti-higiênicas do Padre Severino.  “As celas eram imundas” no Padre Severino, disse André S., interno no Padre Severino no início de 2004, quando tinha 17 anos.91  Quando lhe perguntaram se os chuveiros eram limpos no Padre Severino, Marcos G., 17 anos, respondeu: “Nada.  Uma sujeira.  Fede pra caramba.”92  Relatos sobre a presença de ratos no Padre Severino eram muito comuns entre os jovens e pais que entrevistamos.  “Tinha rato, lacraia”, contou André S.93  “Tinha rato”, confirmou Marcos G.  “A noite a gente via muitos correndo por lá.” 94

A Defensoria Pública descreveu o CAI-Baixada em termos semelhantes numa ação civil pública apresentada em março de 2005:

As instalações são precárias.  Os alojamentos são sujos, fétidos e insalubres, com problemas de infiltração derivando mofo nas paredes, tornando o local propício a doenças respiratórias e disseminação de outras infecções, agravado pelo fato de os adolescentes não receberem roupas suficientes para a troca diária, além de não ter local adequado para as suas necessidades fisiológicas e para o banho diário.95

Além disso, os internos do Padre Severino e de outros centros não têm geralmente roupas de cama e colchões; quando têm, são normalmente velhos e rasgados.  João T., 17 anos, comparou as condições no Padre Severino com as do João Luiz Alves.  “Lá [no Padre Severino] também os colchões eram velhos.  Não tinham espuma direito.  Não como aqui [João Luiz Alves].  Aqui eles são bons.  Lá ficava com as costas doendo.”96  André S. contou-nos que nunca teve um colchão durante os 45 dias que passou no Padre Severino no início de 2004.97  A Defensoria Pública já reclamou quanto à deficiência de colchões e roupas de cama no CAI-Baixada, João Luiz Alves e também no Santos Dumont.98

Os internos do Padre Severino contaram-nos que não recebiam regularmente artigos tais como pasta de dente e sabão.  Marcos G. dependia de sua mãe para lhe trazer sabão e pasta de dente quando estava no Padre Severino.  “A minha mãe trazia, mas uma vez disseram que a pasta de dente não podia entrar”, contou ele.99  André S. disse que conseguir pasta de dente ali “era difícil.  Era de vez em quando, assim no dedo.” 100  Silvia R. trouxe sabão para seu filho quando este se encontrava no Padre Severino, porém ela disse que os agentes também distribuíam sabão aos internos de vez em quando.101

A situação no CAI-Baixada é similar, de acordo com um processo aberto pela Defensoria Pública em março de 2005.  Entre outras deficiências, o processo acusava o fato de que, no CAI-Baixada “os adolescentes não dispõem dos objetos necessários para o seu asseio pessoal (sabonete, local para banho, toalha, pasta de dente etc.)”, não tinham roupas limpas, não recebiam medicamentos necessários e não dispunham de colchões e roupas de cama.102  Na verdade, o diretor do CAI-Baixada escreveu ao escritório central do DEGASE em fevereiro de 2005, para dizer: “Estamos em dificuldades em obter materiais de higiene pessoal para os adolescentes, sem exceção.”103

A roupa é trocada uma vez por semana no Padre Severino e outros centros de internação.  Silvia R. descreveu o que isto significa no espaço restrito de um centro de internação:

A roupa fica com um cheiro enjoativo.  Eles ficam os essas roupas.  Suam.  Ficam em quartos sujos, muitos em cada sala.  Aí eles ficam fedidos.  Aí os agentes chamam, “Ô seus fedidos, seus imundos.” 104

Alguns internos do CAI-Baixada ficam descalços porque o centro não tem calçados ou sandálias para eles, informou a Defensoria Pública, caracterizando esta situação como “não rara”.105  E quando alguns pais que entrevistamos tentaram trazer aos filhos roupas e outros artigos, os filhos às vezes não receberam o que eles trouxeram.  “A roupa dele não entregaram.  Muitas coisas que nós levamos eles não entregaram”, disse Gerson J., o pai de um rapaz de 18 anos interno no Santo Expedito até fevereiro de 2005.106

Como uma conseqüência da falta de condições higiênicas no Padre Severino e outros centros de internação, ouvimos relatos de problemas de pele causados por sarna e outras doenças parasíticas, que a Defensoria Pública descreve como “constantemente” presentes nos centros de internação do Rio de Janeiro.107  “Muitos pegam uma coceira danada”, Silvia R. nos disse.  “Ficam lá naquelas celas sujas, molhadas também.”  Ela nos disse que havia trazido um sabão especial anti-séptico para o seu filho para que ele não pegasse a doença.108  André S. fez um relato semelhante.  Quando estava no Padre Severino, disse ele, “tinha muita gente com coceira.  Ficavam separados de todos. . . .  Ainda tenho marcas aqui no meu pé, umas bolinhas pretas que não saíram.”109  Quando o entrevistamos em maio de 2005, Marcos G., do Santo Expedito, disse que suas mãos coçavam e mostrou pequenos inchaços na mão.  “Muita gente tem isso”, ele disse, informando ainda que não lhe tinham dado nenhum tratamento pela doença.110

Lixo, água empoçada e mato era o que cobria a quadra de basquete do Santo Expedito quando a Human Rights Watch inspecionou o centro em julho de 2003.
(c) 2003 Stephen Hanmer/Human Rights Watch.

Em maio de 2005, a quadra de basquete do Santo Expedito mostrava alguns sinais de melhoria: o suporte da cesta havia sido substituído e o piso de concreto pintado. Mas ainda havia lixo nas laterais da quadra.
(c) 2005 Michael Bochenek/Human Rights Watch.




[79] Entrevista da Human Rights Watch com Neusa M., Rio de Janeiro, 12 de maio de 2005.

[80] “Realidade da hoje é diferente da de 2003, diz diretor”, Folha de S. Paulo, 8 de dezembro de 2004, pág. C4.

[81] Entrevista da Human Rights Watch com um agente do Educandário Santos Dumont, 12 de maio de 2005.

[82] Entrevista da Human Rights Watch pelo telefone com André Hespanhol, advogado do Projeto Legal e presidente da Comissão de Monitoramento do Sistema Sócio-Educacional Temporário do Conselho Estadual para a Defesa da Criança e do Adolescente do Estado do Rio de Janeiro, 13 de maio de 2005.

[83] Entrevista da Human Rights Watch com Marcos G., Educandário Santo Expedito, 23 de maio de 2005.

[84] Entrevista da Human Rights Watch com Simone Moreira de Souza, 23 de maio de 2005.

[85] Entrevista da Human Rights Watch com Marcos G., Educandário Santo Expedito, 23 de maio de 2005.

[86] Ver Ação Coletiva, No. 2005.001.028123-8, pág. 3.

[87] Entrevista da Human Rights Watch com Silvia R., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[88] Note-se que não há nenhuma norma internacional que regule o tamanho da dependência a que cada interno teria direito. Por esta razão, a cotação de capacidade oficial é artificial e vaga, mesmo nas circunstâncias mais favoráveis. Ver, por ex., Human Rights Watch, Behind Bars in Brazil, (New York: Human Rights Watch, 1998), págs. 24.

[89] Entrevista da Human Rights Watch com Anderson F., Educandário Santo Expedito, 23 de maio de 2005.

[90] Entrevista da Human Rights Watch com agente, Educandário Santos Dumont, 12 de maio de 2005.

[91] Entrevista da Human Rights Watch com André S., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[92] Entrevista da Human Rights Watch com Marcos G., Educandário Santo Expedito, 23 de maio de 2005.

[93]. Entrevista da Human Rights Watch com André S., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[94] Entrevista da Human Rights Watch com Marcos G., Educandário Santo Expedito, 23 de maio de 2005.

[95] Ação Coletiva, No. 2005.001.028123-8, pág. 6.

[96]eEntrevista da Human Rights Watch com João T., Escola João Luiz Alves, 12 de maio de 2005.

[97] “Não tinha nem colchão . . . todos os quarenta e cinco dias.”  Entrevista da Human Rights Watch com André S., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[98] Ação Coletiva, No. 2005.001.028123-8, pág. 6 (“Faltam roupa de cama e colchões.”); Ação Civil Pública com Pedido de Antecipação de Tutela, No. 2005.001.028046-5 (apresentada à 1a. Vara de Fazenda Pública da Comarca da Capital, 15 de março de 2005), pág. 3.

[99] Entrevista da Human Rights Watch com Marcos G., Santo Expedito, 23 de maio de 2005.

[100] Entrevista da Human Rights Watch com André S., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[101] Entrevista da Human Rights Watch com Silvia R., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[102] Ação Coletiva, No. 2005.001.028123-8, pág. 2.

[103] Carta de Ivamor Lima Silva, diretor do CAI-Belford Roxo, à Defensoria Pública, Ofício CI/DEGASE/CAI BR No. 066/05, 25 de feevereiro de 2005, citada na Ação Coletiva, No. 2005.001.028123-8, pág. 5.

[104] Entrevista da Human Rights Watch com Silvia R., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[105]No. 2005.001.028123-8, pág. 6.

[106] Entrevista da Human Rights Watch com Gerson J., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[107] “[E]m virtude da precariedade no fornecimento destes materiais, muitas vezes os adolescentes têm que dividir o mesmo material (sabonete, toalha, roupa de cama, etc.) entre si, o que facilita a disseminação de doenças, principalmente a escabiose (sarna), que vem sendo constante nas Unidades de Internação.”  Ação Coletiva, No. 2005.001.028123-8, pág. 5.

[108] Entrevista da Human Rights Watch com Silvia R., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[109] Entrevista da Human Rights Watch com André S., Rio de Janeiro, 20 de maio de 2005.

[110] Entrevista da Human Rights Watch com Marcos G., Educandário Santo Expedito, 23 de maio de 2005.


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