(São Paulo) – Parlamentares brasileiros devem rejeitar uma emenda constitucional perigosa que proibiria o aborto em todas as circunstâncias, disse hoje a Human Rights Watch. A emenda proposta proibiria o aborto mesmo em caso de gravidez decorrente de estupro, ou quando a vida da mulher está em perigo.
A proposta de proibição do aborto faz parte de uma emenda constitucional que será discutida no dia 12 de dezembro por uma comissão especial da Câmara dos Deputados. A comissão especial aprovou a emenda em novembro, após uma votação polêmica, na qual 18 deputados votaram a favor e a única deputada presente votou contra. No dia 12 de dezembro, a comissão especial pode votar o texto final da proposta de emenda constitucional antes de ser levada à votação no plenário da Câmara dos Deputados. Para se tornar lei e alterar a Constituição, o texto precisaria de maioria absoluta – ou três quintos dos votos – nas duas casas do Congresso e a sanção presidencial.
"A proibição total do aborto traria consequências devastadoras para mulheres e meninas no Brasil", disse José Miguel Vivanco, diretor das Américas da Human Rights Watch. "Com essa emenda cruel, até mesmo mulheres e meninas grávidas em decorrência de estupro e aquelas com complicações que ameaçam suas vidas seriam forçadas a continuar uma gravidez contra sua vontade; ou então correriam o risco de prisão e riscos à saúde, incluindo morte, em razão do aborto clandestino."
O aborto é legal no Brasil apenas em casos de estupro, quando necessário para salvar a vida de uma mulher ou quando o feto sofre de anencefalia, uma malformação cerebral congênita e fatal. Mulheres e meninas que interrompem uma gravidez em qualquer outra circunstância podem enfrentar até três anos de prisão. De acordo com relatos da imprensa, 33 mulheres foram presas por aborto somente em 2014, sendo que sete delas foram denunciadas por médicos após terem buscado cuidados pós-aborto em hospitais. Uma delas passou três dias algemada em uma cama.
A Human Rights Watch documentou as consequências das restrições ao aborto no Brasil em um relatório de julho sobre os impactos da epidemia do Zika. Alguns médicos entrevistados para o relatório disseram que, no último ano, haviam tratado mulheres e meninas que utilizaram ácido cáustico ou outros métodos inseguros para tentar induzir o aborto. Uma mulher de 23 anos de idade, que foi estuprada ainda adolescente e sofreu grandes sangramentos após um aborto clandestino, disse à Human Rights Watch: "Eu não tinha muita informação ... eu sangrei muito." Mais de 900 mulheres morreram de aborto inseguro no Brasil desde 2005, segundo dados do Ministério da Saúde.
As restrições ao aborto no Brasil são incompatíveis com as obrigações de direitos humanos. A criminalização do aborto no país afeta negativamente muitos direitos, incluindo os direitos das mulheres à vida, saúde, não discriminação e igualdade, além dos direitos à privacidade e a não ser submetida a tortura e penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Os tratados internacionais de direitos humanos exigem que os governos respeitem os direitos reprodutivos e outros direitos humanos das mulheres. As interpretações oficiais desses tratados por especialistas da Organização das Nações Unidas exigem a remoção de sanções de caráter criminal pelo aborto.
"As restrições no acesso ao aborto que existem no Brasil já colocam em risco mulheres e meninas", afirmou Vivanco. "A emenda proposta tornaria a grave situação dos direitos reprodutivos no Brasil ainda pior".
Em 2017, ocorreram avanços notáveis no que diz respeito a expansão do acesso aos direitos reprodutivos na América Latina, disse a Human Rights Watch. O Chile acabou com uma antiga proibição total do aborto este ano, descriminalizando o aborto quando a vida da mulher grávida estiver em risco, se a gravidez é resultado de estupro, ou quando o feto não sobreviveria fora do útero. No dia 6 de dezembro, parlamentares na Bolívia votaram pela redução das restrições ao aborto, permitindo que as adolescentes acessem o aborto durante as primeiras oito semanas de gravidez.
Duas ações no Supremo Tribunal Federal brasileiro poderiam descriminalizar o aborto em certas circunstâncias. Uma delas defende que as mulheres grávidas infectadas com o vírus Zika devem ter acesso ao aborto, enquanto a outra busca descriminalizar o procedimento em qualquer situação durante as primeiras 12 semanas de gravidez. A Human Rights Watch apresentou pedidos para atuar como amicus curiae em ambos os casos.
No final de novembro, Rebeca Mendes Silva Leite, uma mulher de 30 anos de São Paulo, solicitou ao Supremo Tribunal Federal permissão para interromper legalmente uma gravidez não planejada. A ministra Rosa Weber negou o pedido por motivos processuais, mas não decidiu em relação ao mérito. Após a decisão, Rebeca viajou para a Colômbia, onde realizou um aborto legal.
Vários outros países da América Latina – Nicarágua, El Salvador, República Dominicana, Suriname, Haiti e Honduras – ainda proíbem completamente o aborto. Em uma investigação de 2017, a Human Rights Watch descobriu que a proibição total do aborto na Nicarágua não tem impedido o aborto, mas o tornou mais inseguro. Pesquisas em todo o mundo mostram que quando os governos restringem o aborto, as mulheres continuam o realizando, porém se submetem a procedimentos mais perigosos. De acordo com um relatório da ONU, em 2011, a taxa média de aborto inseguro foi mais de quatro vezes maior em países com políticas restritivas ao aborto do que em países com políticas mais liberais.
"Os membros da comissão especial da Câmara dos Deputados devem rejeitar a perigosa proibição do aborto", disse Vivanco. "As mulheres e meninas brasileiras precisam desesperadamente de maior acesso aos direitos reprodutivos, e não terem suas poucas opções ainda mais reduzidas".