(São Paulo) – O governo do presidente Jair Bolsonaro se recusou a fornecer informações básicas sobre a revisão da principal plataforma sobre políticas públicas de direitos humanos no Brasil. Em 29 de outubro de 2021 foi publicada nova portaria com mudanças, mas que mantém vedação da divulgação dos trabalhos.
Desde fevereiro, um grupo de trabalho formado exclusivamente por representantes do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos está encarregado da revisão das políticas de direitos humanos, incluindo o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). O encerramento das atividades estava planejado para 1º de novembro de 2021, mas hoje o Ministério prorrogou até 30 de junho de 2022, conforme nova portaria.
De acordo com a portaria de fevereiro, o grupo de trabalho poderia convidar membros da sociedade civil para reuniões, mas em um comunicado de imprensa de 29 de outubro o ministério admitiu que não o fez. Na nova portaria o Ministério estabeleceu que o grupo de trabalho “convidará” membros da sociedade civil e órgãos governamentais com atuação na temática de direitos humanos. No entanto, o ministério não alterou a composição do grupo de trabalho, que continuará a ser composto exclusivamente por representantes do governo, e manteve a proibição dos membros do grupo de divulgarem qualquer informação sobre suas discussões até que concluam seus trabalhos.
“O Programa Nacional de Direitos Humanos é resultado de ampla consulta com a sociedade, mas agora é revisto pelo governo Bolsonaro em segredo, por meio de um grupo de trabalho que não inclui quem discorda do governo”, disse Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch no Brasil. “Representantes independentes da sociedade civil deveriam fazer parte do grupo de trabalho. A promessa de convidá-los para algumas reuniões sem garantia de que suas posições serão refletidas no documento final soa como uma manobra para tentar legitimar um processo que permanece obscuro”.
O atual Programa Nacional de Direitos Humanos, uma política implementada em 2009, estabelece uma série de diretrizes e objetivos com a finalidade de aperfeiçoar a proteção de direitos e liberdades. Tem sido a base para políticas de proteção e promoção dos direitos humanos no Brasil.
O ministério estabeleceu o grupo de trabalho em 10 de fevereiro, com 14 membros, todos eles membros do ministério.
Em resposta às críticas da Human Rights Watch e outras organizações sobre a falta de transparência e de participação da sociedade civil no grupo de trabalho, a ministra Damares Alves disse, em um vídeo divulgado em março, que a avaliação do Programa seria “transparente” e que o grupo de trabalho criaria um “mecanismo” para garantir “ampla participação popular”.
A Human Rights Watch por meio de pedido da Lei de Acesso à Informação perguntou ao Ministério qual mecanismo havia sido criado para garantir a transparência e a participação da sociedade civil. A Human Rights Watch também solicitou as agendas das reuniões, as questões discutidas e a lista de membros da sociedade civil, especialistas, organizações ou órgãos governamentais consultados. Nas respostas enviadas em 21 e 30 de setembro, o Ministério informou que o grupo de trabalho realizou 19 reuniões, mas não forneceu as demais informações solicitadas, alegando que as discussões eram secretas.
Ademais, o ministério se recusou a fornecer informações básicas ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), segundo disse seu presidente e defensor público federal, Yuri Costa, à Human Rights Watch em 14 de outubro. O CNDH, instituído por lei, inclui membros da sociedade civil, do sistema judiciário e do governo, incluindo um representante do ministério. Embora a missão do Conselho seja monitorar as políticas de direitos humanos, incluindo o PNDH, o ministério não o tornou membro do grupo de trabalho que está revisando o programa.
O Brasil implementou três Programas Nacionais de Direitos Humanos desde o fim da ditadura (1964-1985). Todos foram redigidos após consultas públicas amplas e transparentes. Para a última revisão, a administração do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva estabeleceu em 2008 um grupo de trabalho formado por representantes da sociedade civil, comissões de direitos humanos do Congresso, promotores, juízes e defensores públicos, além do poder executivo. O grupo de trabalho organizou uma conferência nacional que examinou e atualizou o Programa Nacional de Direitos Humanos anterior, de 2002. Foram realizadas reuniões regionais adicionais.
O governo Lula estimou que aproximadamente 14 mil pessoas participaram das discussões.
O programa atual, adotado em 2009, resultou na criação da Comissão Nacional da Verdade para investigar violações de direitos humanos durante a ditadura. O Programa defende a proteção das pessoas com deficiência contra a discriminação, a redução da letalidade policial, a educação sobre os direitos sexuais e reprodutivos, e a liberdade de expressão, entre outras iniciativas de suma importância.
O governo Bolsonaro tentou enfraquecer todas essas políticas. Abriu caminho para que seja negada educação inclusiva para crianças com deficiência e incentivou escolas segregadas. Por meio de declarações públicas e propostas legislativas, o governo tem estimulado maior violência policial. Criou novos obstáculos para o acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva. O governo também requisitou investigações criminais contra ao menos 17 críticos, e o presidente Jair Bolsonaro rotineiramente bloqueia seguidores que o criticam em suas redes sociais, violando sua liberdade de expressão.
O direito internacional dos direitos humanos exige que os governos forneçam ao público acesso à informação, inclusive publicando informações de interesse público. Sempre que um processo de tomada de decisão puder afetar substancialmente o modo de vida e a cultura de um grupo minoritário, os governos são obrigados a consultar esse grupo. Em termos mais gerais, a transparência é um elemento extremamente importante para a prestação de contas sobre ações do governo e para a governança democrática, disse a Human Rights Watch.
A Declaração e Programa de Ação de Viena, adotado pela Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de 1993, afirma a contribuição vital da sociedade civil para a realização dos direitos humanos e diz que os países deveriam elaborar planos de ação nacionais para atingir esse objetivo. O primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos do Brasil, criado em 1993 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, foi a resposta do país à declaração.
Em 2002, o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos lançou um Manual sobre Planos de Ação Nacionais para os Direitos Humanos que destaca a importância dos mecanismos consultivos. O manual observa que um plano de ação para os direitos humanos “será muito mais eficaz se for produzido como um resultado da parceria entre o governo e a sociedade civil, em vez de um exercício conduzido pelo governo”.
“Ao conduzir uma revisão secreta das políticas de direitos humanos do país, o governo Bolsonaro está violando os direitos de acesso à informação e consulta às comunidades afetadas”, disse Canineu. “Este processo nebuloso é particularmente preocupante porque o governo Bolsonaro tem promovido políticas que violam os direitos humanos, enfraquecendo muitas das proteções que são fundamentais no programa atual”