Home Publicações Sobre HRW
Brasil

Confinamento Cruel: Abusos contra crianças detidas no norte do Brasil

V. EXCESSO DE USO DE CONTENÇÃO

A contenção é desumano. Não vamos educar ninguém nem conseguir nada com as pessoas trancafiadas.

-Maria Ribeiro, Fundação da Criança e do Adolescente, Amapá

A agressão física não é a única violação dos direitos humanos que as crianças sofrem quando internadas. Ao entrar numa unidade de internação, as crianças são freqüentemente confinadas às suas celas por cinco dias ou mais, sem nenhuma oportunidade de exercitar-se ou realizar qualquer outra atividade. Descrita eufemisticamente como período de "observação", "orientação", "avaliação e integração" ou, no caso de um outro centro de internação, como "confinamento terapêutico", a contenção é raramente usada para qualquer um destes fins.

A contenção é também usada como a principal media disciplinar formal. A Human Rights Watch descobriu que a maioria dos centros de internação não têm normas ou procedimentos claros para o uso da contenção como medida disciplinar, e não parece haver limites quanto ao período de tempo que as crianças ficam confinadas ou contidas em suas celas. 107 No centro de internação Espaço Recomeço do Pará, por exemplo, falamos com jovens que tinham ficado confinados por mais de dois meses. No estado do Amazonas, as crianças relataram que tinham sido colocadas em restrição celular por até 15 dias. Em contraste, as unidades de internação do estado do Amapá agora limitam a contenção disciplinar nas celas a um período máximo de 48 horas.

A distinção entre a contenção para fins de "observação" e a contenção disciplinar é geralmente vaga, e tanto jovens como guardas usaram normalmente a mesma palavra para descrever ambas as formas de confinamento à cela. O lugar exato onde as crianças são colocadas durante os períodos de contenção varia de um centro a outro: alguns colocam as crianças em celas especiais de castigo, outros restringem as crianças nas próprias instalações onde estão alojadas. Algumas crianças relataram que ficaram totalmente isoladas de outras crianças durante este período. Outras nos contaram que foram colocadas em celas com outras crianças. Durante a contenção, as atividades de que os jovens podem participar e, conseqüentemente, o tempo que estão fisicamente fora de suas celas a cada dia, varia consideravelmente.

A restrição celular pode ter sérios efeitos adversos sobre o bem-estar de um jovem, particularmente se ele ou ela for confinado por longos períodos de tempo. Como nos disse Patrícia D.: "Para mim, o pior foi ficar isolada. Fiquei muito triste. Passei muito tempo lá, foi mais de um mês presa ali dentro sem sair ou fazer qualquer outra coisa. . . . Para mim, isto foi o pior."108

Quer seja usada como punição ou como uma introdução à internação, uma restrição prolongada à cela é contrária às normas internacionais que enfatizam a necessidade das crianças por "estímulos sensoriais [e] oportunidades de associação com seus colegas."109 Como ilustra o caso de Patrícia D., a restrição à cela pode infligir sofrimento mental às crianças. Em alguns casos, particularmente quando as crianças são confinadas a espaços muito restritos por períodos muito longos de tempo, a restrição celular pode constituir tratamento cruel, desumano ou degradante, que infringe o direito internacional.

Contenção para "observação"
Todas as instalações que visitamos colocavam os jovens em contenção depois de serem admitidos ao centro de internação. No Centro de Internação Espaço Recomeço, por exemplo, os jovens passam por cinco dias de "orientação" depois da chegada, para "avaliação e integração", de acordo com Raimundo Monteiro, gerente do centro.110 Outros diretores descreveram este tipo de contenção como um período de "observação" ou, no caso de outro centro, como "contenção terapêutica". Apesar dos termos diferentes que os diretores usaram para distinguir o confinamento celular para fins disciplinares do confinamento celular para jovens recém admitidos, os próprios internados e os guardas usam comumente a mesma palavra para descrever ambas as formas de confinamento.

O pessoal do Centro de Internação Espaço Recomeço nos disse inicialmente que as crianças eram confinadas às suas celas por não mais do que cinco dias. "O período de observação é de cinco dias. É uma questão de segurança. O máximo é cinco dias", disseram.111 No entanto, as crianças nos disseram várias vezes que ela era usada por períodos muito mais longos, especialmente para os jovens que haviam fugido, capturados e trazidos de volta aos centros de internação. "Me colocaram na contenção. Fiquei lá mais de uma semana depois de chegar ao centro", disse Henrique O. "Era para fazer observação. É uma semana se você for novo no centro, e um mês se você tiver fugido. Eu estava no anexo que faz parte do CIAM [centro de internação pré-julgamento masculino]. Era só eu na cela."112 Disse-nos Tobias V., 17 anos: "Quando cheguei aqui, passei cinco dias na contenção. E isto não inclui o fim-de-semana."113 No caso de Lucas G.: "Fiquei oito dias na contenção [depois de admitido]. É a regra neste lugar."114

Depois de algum tempo, o pessoal do centro de internação Espaço Recomeço acabou admitindo que os períodos de observação "podem durar mais do que cinco dias. Se o adolescente for considerado como um risco para si próprio ou para outros adolescentes, poderão mantê-lo ali." Quando insistimos, acabaram nos dizendo que tinham contido muitos jovens em suas celas durante até 15 dias, no início de seu período de internação, e de 15 a até 30 dias, por terem tentado fugir.115

Durante esse período, os jovens do Espaço Recomeço ficam sujeitos às mesmas restrições que os jovens contidos por razões disciplinares. "Você passa cinco dias encerrado numa cela", disse Henrique O.116 "Não pode sair para a recreação", disse Tobias V.117

Alguns jovens são confinados às celas nas áreas gerais de convívio; quer dizer, eles não são mantidos em áreas separadas e depois levados às suas celas normais, depois de terem cumprido o período de confinamento na cela. "É a mesma cela, só que você não pode sair", disse Lucas G.118

Os jovens dos centros de internação pré-julgamento e do centro de internação feminino do Pará relataram, de forma geral, que ficaram confinados por períodos mais curtos do que os que ouvimos de jovens entrevistados no centro de internação Espaço Recomeço. No centro de internação pré-julgamento masculino, "o período de observação é de cinco dias", disse Henrique O. "Você passa cinco dias com a porta trancada. As celas do CIAM [centro de internação pré-julgamento] são pequenas."119 Graça Q., uma moça de 17 anos do centro de internação feminino, nos disse: "Me colocaram em contenção no primeiro dia. E aí passei 3 dias."120

Porém Iolanda D., também do centro de internação feminino do Pará, disse à Human Rights Watch: "No primeiro dia que cheguei, me revistaram e me colocaram em contenção. Passei 18 dias lá na contenção, sozinha. Não podia fazer nada. Não podia sair. Nada de aula, só podia ver o médico. As aulas só vieram depois e não durante a contenção." Quando lhe perguntamos por que foi colocada em contenção, ela respondeu: "É porque todos os adolescentes são confinados à cela depois de chegar aqui."121

No Amapá, Lincoln E. nos disse que quando entrou no centro de internação Aninga em fevereiro de 2001, "o primeiro dia eu passei numa cela, fiquei cinco dias ali". Mas, ao contrário dos jovens nos centros de internação do Pará, ele podia sair da cela durante esse período para ir à aula e outras atividades.122 Mas Patrícia D., internada em Aninga de agosto de 2000 a maio de 2001, nos disse que quando ela foi colocada na contenção, no início de sua estadia no centro, "Não havia aulas. Eles me trancaram. Talvez uma semana. E me deixaram lá."123

As autoridades de internação do Maranhão nos disseram que os jovens são mantidos separados do resto dos detentos durante 15 dias depois de serem admitidos nos centros. "Temos a contenção terapêutica", disse José Asenção Fonseca, diretor do Centro de Juventude Esperança em São Luís. "O adolescente não fica em isolamento. Enquanto estiver sendo avaliado, ele participa de algumas atividades. Ele permanece sozinho, mas não é mantido isolado."124 " A contenção terapêutica permite uma introdução gradual ao centro", explicou Dione Pereira. "Não temos isolamento. Não usamos a força física. Não retiramos a recreação e as atividades de lazer."125 Devido ao momento em que fizemos nossa visita, não pudemos entrevistar os jovens do Centro de Juventude Esperança para confirmar estes relatos oficiais.

No Amazonas, Hefranio Maia, diretor assistente do centro de internação Dagmar Feitoza de Manaus, nos informou que os jovens passam um período de observação na Unidade Zero. "Este período é de 15 dias . . . . Depende da situação deles. Às vezes, eles passam um pouco mais tempo lá", ele completou.126 Paulo R., rapaz de 19 anos que tinha passado quase três anos no centro à época de nossa entrevista, disse-nos que passou uma semana na Unidade Zero quando chegou. "Saímos para outras atividades e para estudar", ele disse. Relatou ainda que um instrutor reuniu-se com ele naquela semana para definir qual era seu nível de instrução.127

Não ficou claro se os centros de internação realmente usam o período inicial de contenção para o fim declarado de fazer observações e avaliações. Quando perguntamos a Tobias V. por que ele havia sido confinado à sua cela durante cinco dias ao chegar, ele respondeu: "Não sei. Porque o diretor mandou."128 Num comentário típico dos que ouvimos dos jovens, Henrique O. disse-nos que no centro de internação pré-julgamento do Pará, "A observação é de cinco dias, mas não vem nenhum encarregado falar com você nesses cinco dias; só depois é que eles vêm falar com você."129

A Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal de Deputados criticou fortemente a prática de confinar os jovens às suas celas logo depois de admitidos aos centros de internação. Depois de inspecionar um centro de internação feminino do Pará, a comissão concluiu que a prática de colocação das jovens em contenção, ao chegar ao centro, correspondia à aplicação de "uma nova sentença, desta vez extrajudicial, que agrava aquela já proferida pela autoridade judiciária." O relatório da comissão observou:

Segundo o diretor da unidade, a medida de contenção tem por objetivo `avaliar' o perfil da novata. A medida, não obstante, nos parece absolutamente contraproducente e desnecessária, além de ilegal. Um bom profissional de psicologia pode em uma entrevista rigorosa desvendar completamente o `perfil' da interna, oferecendo aos técnicos e à direção todas as recomendações e cuidados necessários para a aplicação individualizada de medida de natureza socioeducativa. O isolamento forçado e arbitrário pode estimular reações de contrariedade e agressividade ou, por outro lado, induzir a quadros depressivos.130

Contenção como medida disciplinar
A contenção também é usada como principal medida formal disciplinar na maioria das instalações que visitamos. O Centro Socioeducativo Masculino (CESEM) do Pará e a Casa de Semilibertade do Amapá foram os únicos centros que não recorriam aos períodos prolongados de contenção como medida disciplinar. Em outros centros de internação, as crianças nos disseram terem sido colocadas em contenção disciplinar por períodos que variavam de 24 horas a três meses; 15 dias era o período de tempo mais comum entre os relatos que ouvimos. As condições da contenção durante estes períodos eram particularmente severas no centro de internação Espaço Recomeço, no centro de internação pré-julgamento masculino, no centro de internação feminino do Pará, no centro de internação feminino Marise Mendes do Amazonas, e no centro de internação masculino da Rondônia. Em todas estes centros, os jovens eram colocados em celas de castigo imundas e escuras.

"A punição aqui é a restrição", disse Tobias V., rapaz de 17 anos do centro de internação Espaço Recomeço do Pará. "Se você brigar com outro adolescente ou se envolver num conflito qualquer, será colocado em isolamento por 15 dias. Se for mais grave, a punição é de um mês."131 Henrique O. esteve em restrição celular três vezes enquanto esteve no centro de internação Espaço Recomeço. "A primeira vez foi de uma semana, e as outras foram de quinze dias. Em todas as três vezes, me colocaram no anexo."132 Conversamos com outros jovens do centro de internação que tinham sido colocados sob restrição em suas celas por mais de dois meses.133

O centro de internação pré-julgamento masculino do Pará, o Centro de Internação de Adolescentes Masculinos (CIAM), e seu correspondente feminino, o Centro de Internação de Adolescentes Feminino (CIAF), usam também a restrição na cela como sua forma principal de disciplina. Graça Q., do centro de internação feminino, disse-nos: "Passei 15 dias em contenção. Uma das regras é que você não pode participar de brigas ou fazer ameaças [a outros]. Eles pensaram que eu estava brigando."134 Conforme disse Henrique O.: "Se você cometer uma infração, eles lhe dão três dias de contenção."135 "Me disseram para não brigar, não fumar, todas as coisas que você não pode fazer, senão me colocavam em contenção", disse Edison L., rapaz de 15 anos do centro de internação pré-julgamento masculino. "Normalmente, a contenção é por três dias."136

No Maranhão, dirigentes da organização estadual Fundação da Criança e do Adolescente declararam que a restrição na cela era usada como medida disciplinar por até dois dias. "Eles recebem atendimento médico e psicológico e instrução básica", disse José Asenção Fonseca, diretor do Centro de Juventude Esperança de São Luís. Quando lhe perguntamos quanto tempo eles ficam em suas celas, ele respondeu: "Eles tem um mínimo de duas horas fora de suas celas por dia." Ele nos disse que os jovens que estão restritos à cela recebem visitas com a mesma duração que as recebidas pelos outros internados.137

Quando perguntamos a Maria Ribeiro - a representante do Amapá que havia descrito a restrição celular como "desumana" - por que ela era usada tão freqüentemente, ela respondeu: "Todos estão acostumados com este sistema de contenção."138 E continuou: "No ano passado, decidimos acabar com o uso da restrição. Mas tivemos um período extremamente difícil depois disto, um período de caos que durou uns três meses mais ou menos. Tivemos que repensar a situação e voltar à observação. O adolescente permanece em seu próprio compartimento. Ele tem direito a ir a escola interna, estudar. Ele sai de seu compartimento para ir à escola, mas não sai para outras atividades. Também tem o treinamento vocacional, garantimos isto também. O período de observação é de 24 horas ou, no máximo, 48 horas."139

A maioria dos jovens detidos no centro de internação Aninga do Amapá relataram períodos de 24 horas a 48 horas de contenção na cela, os quais foram corroborados por relatórios oficiais. Terence M., que passou dez meses em Aninga em 2001, contou-nos: "Eles tinham `observação' por 24 a 48 horas. Davam-lhe 24 horas, por exemplo, se você não comparecesse à escola, que era um delito menos grave. As 48 horas eram dadas para os casos mais sérios, por exemplo, um briga", disse ele. "Eu fiquei em `observação' alguns dias, somente uma vez por 48 horas, o resto das vezes foi por 24 horas."140 "Você é colocado em observação se não for à escola", disse Lucas G., em Aninga desde outubro de 2001.141 Lincoln D., que já estava em Aninga há mais de um ano por ocasião de nossa entrevista, também nos disse que as brigas eram punidas pela contenção em cela por 24 a 48 horas, dependendo da gravidade do delito.142

Mas Josefina S., de 17 anos, que estava em Aninga há nove meses quando fizemos a entrevista, contou que o que disseram a ela foi que iriam colocá-la em restrição celular por um período muito mais longo se ela se comportasse mal. "Você fica em `observação' durante 10 dias, se for ofensa grave. Se não for, é só dois dias."143 Patrícia D. nos disse que passou dois períodos de restrição celular, o primeiro de setembro a novembro de 2000 e depois, de novo, um período mais curto em janeiro de 2001. "Foram três meses que passei em isolamento", disse ela. "É por que eu era muito rebelde. Brigava muito. Então esta foi minha punição, me deixaram isolada."144

Alguns centros de internação colocam as crianças nas celas de castigo, onde ficam sujeitas a condições particularmente difíceis. No Centro de Internação Espaço Recomeço, os jovens ficam na cela de castigo localizada imediatamente à esquerda da enfermaria no bloco administrativo, ou então no anexo, que é um bloco de celas que faz parte do complexo de internação pré-julgamento masculino logo ao lado. No centro de internação pré-julgamento masculino do Pará, a maioria dos jovens que tinham sido colocados em contenção relataram que foram removidos para a ala mais antiga do centro. Os jovens do centro de internação Dagmar Feitoza do Amazonas disseram que aqueles que cometiam infrações disciplinares eram removidos para uma ala conhecida como Unidade Zero, a qual é usada também para aqueles que acabam de chegar à internação.145 As moças do centro de internação Marise Mendes do Amazonas serviam períodos de contenção disciplinar em celas pequenas, escuras e sem ar.146 E no centro de internação masculino do estado de Rondônia, nosso pesquisador conversou com sete jovens que estavam amontoados em uma cela de castigo pequena e imunda.147

A cela de castigo do Centro de Internação Espaço Recomeço continha quatro jovens no dia em que visitamos o centro. Ao falarmos com eles através das barras, antes de nossa entrevista do gerente, eles nos disseram que estavam restritos à cela. Mais tarde, ao perguntar ao gerente sobre a dita cela, este nos informou: "Eles não estão em restrição."148 Por trás dele, os jovens balançaram a cabeça para indicar que não concordavam com o que ele estava dizendo. Quando o entrevistamos mais tarde, Jaime R. disse-nos que ele e outros jovens estavam em contenção como punição por terem participado de brigas. Ele já estava na cela há um mês. Durante o dito período, a cela tinha recebido até seis jovens. A cela tinha duas camas beliche sem colchões, e uma rede. "Quando há seis pessoas aqui, dois têm que dividir uma cama", ele nos disse.149 Flávio M., 17 anos, contou que passou uma semana na cela enquanto esteve no Espaço Recomeço. "Era uma cela próxima à administração. Éramos três pessoas na cela", ele disse. "Passei uma semana na cela sem sair."150

Havia nove jovens no anexo do Centro de Internação Espaço Recomeço no dia em que o visitamos. A maioria se dividia em dois por célula; alguns tinham uma cela sozinhos. Gilson R., 16 anos, estava no anexo há cerca de 45 dias quando conversamos com ele no início de abril de 2002. Ele havia sido enviado ao anexo depois de uma tentativa infrutífera de fuga durante uma rebelião ocorrida em fevereiro. "Só podemos sair da cela para 15 minutos de sol a cada dia", ele relatou-nos; durantes esses 15 minutos, ele pode andar para baixo e para cima ao longo do corredor.151 "Você passa o tempo todo trancado", disse Henrique O. "Eles não o deixam sair para tomar sol."152

Romão S., que passou dois meses e meio no anexo do Centro de Internação Espaço Recomeço em 2001, descreveu as condições do lugar como "as piores que existem". Ele nos disse que a única vez que saia da cela era durante 15 ou 20 minutos toda manhã. "O tempo que ficávamos fora da cela variava, dependendo do guarda." Ele acrescentou que não podia sair do anexo durante o tempo que passava em restrição celular.153 Os jovens em contenção no Espaço Recomeço podem receber visitas de familiares, porém por menos tempo do que os outros internados. "As visitas não ficam suspensas, porém as visitas normais são de duas horas, enquanto que as visitas durante o período de isolamento são de trinta minutos", disse Tobias V.154 Os jovens do anexo recebiam as visitas no corredor, fora da cela. Gilson R. disse que ele pode receber visitas no anexo todo domingo, mas não pode deixar sua célula durante este período.155

Os jovens detidos no centro de internação pré-julgamento masculino do Pará relataram que, geralmente, eles ficam na ala mais antiga do centro quando estão em contenção. "Passei três dias isolado na ala antiga, no prédio antigo" disse Flávio M.156 Às vezes, eles são colocados no anexo, o bloco de celas que era usado por internos do Centro de Internação Espaço Recomeço à época de nossa visita. Edgar B., de 14 anos, declarou: "Passei uma noite inteira ali. Peguei um pedaço de jornal e um monitor me viu. Ele me colocou em contenção, nas celas onde ficam as pessoas do EREC [Centro de Internação Espaço Recomeço]. Estes são os garotos maiores, os grandes, de 17 anos ou mais."157

Antes do Centro de Juventude Esperança ter sido transferido a uma nova instalação, as crianças eram mantidas restritas em uma cela de castigo localizada num prédio externo, longe do bloco principal de alojamento, de acordo com a entidade não governamental Centro Marcos Passerini. "Ela realmente existia", disse Francisco Lemos, advogado do grupo. "Não conseguimos obter informações oficiais sobre a mesma, porém as crianças nos disseram que as coisas eram feitas assim." E acrescentou que as crianças contaram que, normalmente, eram colocadas na cela durante cinco dias de cada vez.158

Pelo menos alguns jovens não tiveram permissão para participar das aulas durante o tempo que estavam confinados às suas celas. "Não há nada para fazer", disse Inês F., de 14 anos, no centro de internação feminino. "Não há nenhuma atividade. Eles trazem suas refeições." Ela nos disse que não pôde participar das aulas durante os 15 dias em que ficou isolada.159 Porém Edison L., detido no centro de internação pré-julgamento masculino, declarou: "Não havia recreação, mas você tinha que estudar."160 E no centro de internação Dagmar Feitoza do Amazonas, Paulo R. nos contou que os jovens que eram colocados em contenção por motivos disciplinares puderam participar das aulas e receber visitas, se bem que não podiam participar de outras atividades.161 De forma semelhante, Gilberto S. disse: "você não pode sair para fazer esporte, só para educação".162

Nenhum dos centros de internação que usaram a contenção como medida disciplinar puderam nos mostrar uma lista de infrações e as sanções aplicáveis às mesmas. Os dirigentes de todos os centros nos disseram que faziam um resumo oral das regras para os jovens e a maioria das crianças podia recitar duas ou três regras básicas referentes a brigas, danos à propriedades e outras afins. Uma descrição típica das regras de uma instituição, pelo menos da forma que os jovens as entendem, foi-nos dada por Lucas G.: "Não recebi nada por escrito. Houve uma apresentação. Me disseram que poderia receber visitas e, no mais, que eu não participasse de brigas nem me envolvesse em conflitos."163

Achamos particularmente preocupante o tempo que os jovens podem ficar detidos na contenção do Centro de Internação Espaço Recomeço e a aparente ausência de quaisquer limitações a esta situação. Não há período específico de tempo de contenção", disse-nos Raimundo Monteiro, gerente do centro.164

Também ficamos apreensivos ao saber que no Centro de Internação Espaço Recomeço e em outros centros, a decisão de colocar um jovem em contenção não está sujeita a uma avaliação razoável e que os jovens têm pouca ou nenhuma chance de serem ouvidos em sua própria defesa. "A decisão inicial de colocar um jovem em contenção é tomada pelo monitor, que pede assessoria ao pessoal profissional na avaliação da situação, juntamente com a administração. A decisão é tomada pelo diretor e a equipe profissional", contou-nos Monteiro. Quando lhe perguntamos quem avaliava tais decisões, ele respondeu: "As mesmas pessoas que tomam a decisão; é o mesmo grupo que as analisa."165 Apesar de Monteiro ter alegado que ele e a equipe profissional "normalmente. . . consultam o adolescente" durante a avaliação de casos de jovens em situação de contenção,166 não vimos nenhuma evidência de que os jovens tenham a oportunidade de serem ouvidos a qualquer momento. Por exemplo, quando perguntamos a Tobias V. se havia uma audiência ou a oportunidade de apelar, ele respondeu: "Não. Somente por bom comportamento você poderia sair antes [do período de 15 dias]."167 De forma similar, Gilson R. nos disse que não houve nenhuma audiência no seu caso, antes de ele ser colocado em isolamento. "Não me chamaram para conversar comigo", concluiu. 168

A omissão no oferecimento aos jovens de audiência durante o processo disciplinar não está restrita ao centro de internação Espaço Recomeço. Graça Q. nos disse que não havia apelação da decisão de colocar um jovem em restrição celular no centro de internação feminino in Pará.169 Ouvimos relatos semelhantes de jovens em praticamente todo centro de internação que visitamos.

Os únicos centros que não utilizam períodos prolongados de contenção como medidas disciplinares eram o Centro Sócio-educativo Masculino (CESEM), o menos restritivo dos centros de detenção do Pará, e a instalação de semiliberdade que visitamos no Amapá. A diretora do CESEM nos disse que os jovens ficam restritos aos seus compartimentos durante uma ou duas horas. O pessoal do CESEM diz aos detentos que eles poderão ser enviados de volta ao Centro de Internação Espaço Recomeço caso não se comportem corretamente. "Falamos com eles. Se não funcionar, eles sabem que podem ser enviados de volta", disse ela. Quando perguntamos a ela se o centro de internação tinha realmente transferido algum jovem por razões disciplinares, ela respondeu: "Em casos extremos, sim." Ela disse que dois jovens tinham sido devolvidos no ano anterior à nossa visita.170 Na instalação de semiliberdade do Amapá, tanto jovens como funcionários nos disseram que os jovens podem perder o direito a certas atividades se cometerem infrações disciplinares. "Eles retiram as atividades se a [infração] for muito grave. Geralmente, eles dão uma advertência", disse Gustavo B., de 16 anos.171 A unidade permite que muitos de seus detentos passem fins-de-semana com familiares, dizendo-lhes que perderão estes privilégios se não se comportarem. "É melhor seguir as regras para não ter que dormir nas celas" nos fins-de-semana, Jacó G. nos disse.172

Normas legais
O contato com os colegas, familiares e a comunidade em geral compensa pelos efeitos prejudiciais da detenção sobre a saúde mental e emocional de uma criança e promove sua eventual reintegração na sociedade.173 De forma semelhante, as normas internacionais recomendam a colocação de crianças no ambiente menos restritivo possível, dando prioridade às unidades "abertas", ao invés das "fechadas".174 Toda unidade, seja aberta ou fechada, deve considerar atentamente a necessidade que as crianças têm de "estímulos sensoriais, oportunidades de associação com seus colegas, e participação em esportes, exercícios físicos e atividades de lazer".175 Neste sentido, as Regras da ONU para a Proteção de Jovens recomendam aos centros de internação oferecerem às crianças uma "comunicação adequada com o mundo externo";176 permitir exercícios diários, de preferência ao ar livre;177 e integrar sua educação, oportunidades de trabalho e atendimento médico o máximo possível com a comunidade local.178 De forma coerente com esta abordagem fundamental, as normas internacionais proíbem o uso do confinamento em espaços fechados, colocação em celas escuras, "ou qualquer outra punição que comprometa a saúde física ou mental dos jovens em questão."179

Além disso, as sanções disciplinares devem ser impostas dentro de um cumprimento rígido das normas estabelecidas, as quais devem identificar a conduta que constitui ofensa, delinear o tipo e duração das sanções, e dispor sobre as apelações.180 Os jovens devem ter a oportunidade de serem ouvidos em sua própria defesa antes que sanções disciplinares sejam aplicadas, bem como durante as apelações.181

Quando estas normas não são seguidas, particularmente quando as crianças são confinadas em lugares fechados durante períodos longos de tempo, a restrição celular pode constituir tratamento cruel, desumano ou degradante, em violação à Convenção sobre os Direitos da Criança, ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, e à Convenção sobre Tortura.182

107 No caso de prisioneiros adultos, a lei brasileira dispõe que o isolamento disciplinar não pode durar mais do que trinta dias. Ver Lei de Execução Penal, art. 53.

108 Entrevista da Human Rights Watch, Santana, Amapá, 16 de abril de 2002.

109 Regras da ONU para a Proteção de Jovens, art. 32.

110 Entrevista da Human Rights Watch com Raimundo Monteiro, 8 de abril de 2002.

111 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 12 de abril de 2002.

112 Entrevista da Human Rights Watch, Centro Sócio-Educativo, Ananideua, Pará, 12 de abril de 2002.

113 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

114 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

115 Entrevista da Human Rights Watch com o pessoal do Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 12 de abril de 2002.

116 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

117 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

118 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

119 Entrevista da Human Rights Watch, Centro Sócio-Educativo Masculino, Ananideua, Pará, 12 de abril de 2002.

120 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação de Adolescentes Feminino, Ananideua, Pará, 11 de abril de 2002.

121 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação de Adolescentes Feminino, Ananideua, Pará, 11 de abril de 2002.

122 Entrevista da Human Rights Watch, Macapá, Amapá, 16 de abril de 2002.

123 Entrevista da Human Rights Watch, Santana, Amapá, 16 de abril de 2002.

124 Entrevista da Human Rights Watch com José Fonseca, 19 de abril de 2002.

125 Entrevista da Human Rights Watch com Dione Pereira, 19 de abril de 2002.

126 Entrevista da Human Rights Watch com Hefranio Maia, subdiretor do Centro Sócio-Educativo Assistente Social Dagmar Feitoza, Manaus, Amazonas, 22 de abril de 2002.

127 Entrevista da Human Rights Watch, Centro Sócio-Educativo Assistente Social Dagmar Feitoza, Manaus, Amazonas, 22 de abril de 2002.

128 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

129 Entrevista da Human Rights Watch, Centro Sócio-Educativo Masculino, Ananideua, Pará, 12 de abril de 2002.

130 Comissão de Direitos Humanos, IV Caravana Nacional de Direitos Humanos, pp. 36-37.

131 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

132 Entrevista da Human Rights Watch, Centro Sócio-Educativo Masculino, Ananideua, Pará, 12 de abril de 2002.

133 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

134 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação de Adolescentes Feminino, Ananideua, Pará, 11 de abril de 2002.

135 Entrevista da Human Rights Watch, Centro Sócio-Educativo Masculino, Ananideua, Pará, 12 de abril de 2002.

136 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação de Adolescentes Masculino, 9 de abril de 2002.

137 Entrevista da Human Rights Watch com José Fonseca, 19 de abril de 2002.

138 Entrevista da Human Rights Watch com Maria Ribeiro, 16 de abril de 2002.

139 Entrevista da Human Rights Watch com Maria Ribeiro, 15 de abril de 2002.

140 Entrevista da Human Rights Watch, Macapá, Amapá, 15 de abril de 2002.

141 Entrevista da Human Rights Watch, Macapá, Amapá, 16 de abril de 2002.

142 Entrevista da Human Rights Watch, Macapá, Amapá, 16 de abril de 2002.

143 Entrevista da Human Rights Watch, Santana, Amapá, 16 de abril de 2002.

144 Entrevista da Human Rights Watch, Santana, Amapá, 16 de abril de 2002.

145 Entrevista da Human Rights Watch, Centro Sócio-Educativo Assistente Social Dagmar Feitoza, Manaus, Amazonas, 22 de abril de 2002.

146 Entrevista da Human Rights Watch, Centro Sócio-Educativo Marise Mendes, Manaus, Amazonas, 22 de abril de 2002.

147 Entrevista da Human Rights Watch, Casa do Adolescente, Porto Velho, Rondônia, 24 de abril de 2002.

148 Entrevista da Human Rights Watch com Raimundo Monteiro, 8 de abril de 2002.

149 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

150 Entrevista da Human Rights Watch, Centro Juvenil Masculino, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

151 Entrevista da Human Rights Watch, anexo do Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

152 Entrevista da Human Rights Watch, Centro Sócio-Educativo Masculino, Ananideua, Pará, 12 de abril de 2002.

153 Entrevista da Human Rights Watch, Centro Juvenil Masculino, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

154 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

155 Entrevista da Human Rights Watch, Anexo do Centro de Internação Espaço Recomeço

156 Entrevista da Human Rights Watch, Centro Juvenil Masculino, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

157 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação de Adolescentes Masculino, Ananideua, Pará, 9 de abril de 2002.

158 Entrevista da Human Rights Watch com Francisco Lemos, 18 de abril de 2002.

159 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação de Adolescentes Feminino, Ananideua, Pará, 11 de abril de 2002.

160 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação de Adolescentes Masculino, 9 de abril de 2002.

161 Entrevista da Human Rights Watch, Centro Sócio-Educativo Assistente Social Dagmar Feitoza, Manaus, Amazonas, 22 de abril de 2002.

162 Entrevista da Human Rights Watch,Centro Sócio-Educativo Assistente Social Dagmar Feitoza, Manaus, Amazonas, 22 de abril de 2002.

163 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

164 Entrevista da Human Rights Watch com Raimundo Monteiro, 8 de abril de 2002.

165 Ibid.

166 Ibid.

167 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

168 Entrevista da Human Rights Watch, Anexo do Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

169 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação de Adolescentes Feminino, Ananideua, Pará, 11 de abril de 2002.

170 Entrevista da Human Rights Watch com Angela Pompeu, 12 de abril de 2002.

171 Entrevista da Human Rights Watch, Macapá, Amapá, 15 de abril de 2002.

172 Entrevista da Human Rights Watch, Macapá, Amapá, 15 de abril de 2002.

173 Ver Regras da ONU para a Proteção de Jovens, arts. 1-3.

174 Ver Regras Mínimas da ONU para a Administração da Justiça Juvenil ("Regras de Beijing"), G.A. Res. 40/33 (1985), comentário ao art. 19.

175 Regras da ONU para a Proteção de Jovens, art. 32.

176 Ibid., art. 59.

177 Ibid., art. 47.

178 Ibid., arts. 38, 45, e 49.

179 Ibid., art. 67.

180 Ver ibid., art. 68.

181 Ver ibid., art. 70. Ver também Convenção sobre os Direitos da Criança, art. 12(2).

182 Ver Convenção sobre os Direitos da Criança, art. 37(a); Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ICCPR), aberto para assinatura em 19 de dezembro de 1966, 999 U.N.T.S. 171 (com entrada em vigor em 23 de março de 1976, e acordado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992), art. 7; Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Deshumanos ou Degradantes, adotada em 10 de dezembro de 1984, 1465 U.N.T.S. 85 (com entrada em vigor em 26 de junio de 1987, e ratificado pelo Brasil em 28 de setembro de 1989).


Voltar
Bajar en formato pdf

I. RESUMO

II. RECOMENDAÇÕES

III. UMA VISÃO GERAL DA DETENÇÃO JUVENIL NO NORTE DO BRASIL

IV. MAUS TRATOS PELA POLÍCIA MILITAR E GUARDAS CIVIS

V. USO EXCESSIVO DA CONTENÇÃO

VI. VIOLÊNCIA ENTRE JOVENS

VII. CONDIÇÕES DE VIDA

VIII. EDUCAÇÃO

IX. SERVIÇOS MÉDICOS E DE SAÚDE MENTAL

AGRADECIMENTOS

HRW Logo

Copyright Human Rights Watch 2000
350 Fifth Avenue, 34th Floor, New York, NY 10118 Estados Unidos