Home Publicações Sobre HRW
Brasil

Confinamento Cruel: Abusos contra crianças detidas no norte do Brasil

VIII. EDUCAÇÃO

O direito à educação primária obrigatória e gratuita é garantida pela constituição brasileira, e o Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe explicitamente que os jovens privados de liberdade, inclusive os que se encontram em detenção pré-julgamento, têm o direito de "receber educação e treinamento vocacional".253 Mas a maioria dos jovens em detenção concluíram somente de um a quatro anos de instrução primária, sendo que muitos são analfabetos.

Acesso à educação seria particularmente benéfico para jovens detentos, muitos dos quais revelam desvantagem educacional ao chegar ao centro. Muitos dos jovens que entrevistamos não receberam nenhuma instrução durante sua detenção. João L., 17 anos, que estava na Casa do Adolescente de Rondônia há quase um mês quando o entrevistamos, não tinha tido nenhuma aula desde sua chegada.254 Lucas G., detido no Centro de Internação Espaço Recomeço, disse-nos: "Já passei um mês neste lugar e ainda não estou estudando."255 Damião P., que tinha chegado ao quarto ano primário antes de ser detido, relatou: "Desde que entrei no EREC [o centro Espaço Recomeço], ainda não estudei." Disse que estava no centro de internação há um pouco mais de dois meses.0 Igualmente, Gilson R. e Tobias V. nos disseram que não estavam frequentando a escola.1

Na unidade de detenção pré-julgamento de Manaus, não se oferecia nenhum ensino. Tanto o pessoal encarregado como os jovens do centro de detenção Raimundo Parente relataram que ainda não tinham aulas, mas que elas deveriam começar em breve. "Não temos ensino neste momento", disse o diretor do centro.2 Um representante da secretaria estadual de educação nos disse: "Dispomos de um professor para as aulas da manhã, mas o problema é o transporte." Quando lhe perguntamos quando poderiam oferecer aulas no centro de detenção Raimundo Parente, respondeu: "Até o início de maio [de 2002] a escola certamente estará funcionando."3 "O que mais precisamos aqui é de escola", disse Orlando S. à Human Rights Watch.4

Em outras unidades de detenção, não foi possível perceber nenhum sistema específico de permissão aos jovens para freqüentar as aulas. No Centro de Internação Espaço Recomeço, por exemplo, ouvimos depoimentos de alguns jovens de que estavam frequentando a escola. Maurício A. nos disse: "Estudamos de segunda a sexta. Eu estou na segunda série."5 O mesmo ocorria na Rondônia.

Alguns jovens disseram que não tiveram nenhum ensino enquanto estiveram detidos porque a unidade de detenção não oferecia o grau de instrução de que necessitavam. "Aqui eles só tem até a quarta série", disse Flávio M., um rapaz de 17 anos do Centro Juvenil Masculino, que estava na sexta série no centro de internação Espaço Recomeço. "Aqui não tem curso para mim. Quero estudar, quero fazer um curso de computação."6 Loide Gomes, assistente social do Centro Marcos Passerini de São Luís, explicou: "Existem poucos alunos para a escola secundária. Isto sempre foi um problema."7

Outros não receberam nenhuma instrução porque os juízes em seus casos tinham dado sentenças específicas proibindo-os de saírem de seus centros de internação, inclusive para estudar. Patrícia D., detida no centro de internação Aninga de agosto de 2000 até maio de 2001, disse que não podia participar das aulas por esta razão. "Não podia, porque já tinha terminado o primário. Estava no segundo ano secundário. Aqui não me deixavam sair para estudar fora [do centro de internação]. . . . Não podia sair devido à ordem do juiz."8

Com muita freqüência, os jovens confinados relataram não poder freqüentar a escola. Isto ocorria particularmente no centro Espaço Recomeço. Henrique O. disse que não havia aulas para os que estavam na contenção. "Não, você não pode ter aulas", ele disse. Quando perguntamos por quê, disse: "Porque você tem que ficar ali", na cela.9

Os que conseguiram ir à escola enquanto estiveram detidos fizeram estimativas variadas do tempo que passaram em classe. Todos os que entrevistamos nas unidades do Amapá disseram que passavam quatro horas por dia na escola. Os jovens do centro de internação Espaço Recomeço fizeram as estimativas mais baixas do tempo passado em classe, geralmente duas horas por dia ou menos.

"Em geral, a instrução é muito básica", disse Francisco Lemos.10 "Eles usam um sistema acelerado", disse Loide Gomes, descrevendo um programa de estudos concebido para ensinar aos alunos três anos de instrução básica em 15 meses.11

Mesmo quando os jovens podem ter aulas, o tempo que passaram estudando poderá não ser aceito pelas secretarias de educação de suas comunidades. "A escola [durante a detenção] não tem validade oficial", observou Lemos.12

O direito à educação
O direito à educação está garantido no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, na Convenção sobre os Direitos da Criança, e no Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos na Área de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (conhecido como o Protocolo de San Salvador). Todos estes tratados especificam que a educação primária tem que ser "obrigatória e disponível gratuitamente a todos". A educação secundária, inclusive educação vocacional, tem que "estar disponível e acessível a toda criança", com a introdução progressiva da educação secundária gratuita.13 Além disso, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos garante a toda criança o direito a "medidas de proteção que sejam necessárias à sua condição de menor", cláusula esta que o Comitê de Direitos Humanos interpretou como incluindo educação suficiente para permitir que toda criança desenvolva suas capacidades e goze seus direitos civis e políticos.14

Nos termos do artigo 26 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, o Brasil é obrigado a respeitar o direito de toda pessoa, "sem discriminação, tendo em vista a proteção igualitária da lei". Além disso, a Convenção contra a Discriminação em Educação proíbe:

toda discriminação, exclusão, limitação ou preferência que, baseada em raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou outras, origem nacional ou social, condição econômica de nascimento, tenha o fim ou efeito de anular ou prejudicar a igualdade do tratamento em educação e em particular . . . a privação de qualquer pessoa ou grupo de pessoas de acesso à educação de qualquer tipo . . . .15

De forma coerente com estas disposições não discriminatórias, quando um Estado oferece educação às suas crianças, ele não pode arbitrariamente negar educação a grupos particulares de crianças. O Estado poderá fazer distinção entre grupos de indivíduos somente na medida em que tais distinções se basearem em critérios razoáveis e objetivos.16

As normas internacionais esclarecem que a condição de detenção não é justificativa para negar a educação a crianças. Como reconfirmado pelas Regras da ONU para a Proteção dos Jovens, os jovens não perdem o direito à educação quando confinados. "Todo jovem em idade escolar obrigatória" que fique privado de sua liberdade "tem o direito a uma educação adequada às suas necessidades e habilidades", educação esta "cujo fim deve ser o de preparar o/a jovem para seu retorno à sociedade".17 As Regras de Beijing recomendam que as autoridades governamentais certifiquem-se de que as crianças privadas de sua liberdade "não deixem a instituição onde encontravam-se internadas apresentando desvantagens educacionais".18

O direito à instrução é um direito de implantação progressiva, ou seja, a implantação pode ocorrer durante um período de tempo, sujeito aos limites dos recursos disponíveis. Um país signatário do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais concorda em "tomar providências . . . dentro do máximo permitido por seus recursos disponíveis" para a plena realização do direito à educação.19 Mas como o Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais já declarou, a proibição da discriminação "não está sujeita nem à realização progressiva nem à disponibilidade de recursos; ela aplica-se de forma plena e imediata a todos os aspectos da educação e engloba todas as razões de discriminação proibidas internacionalmente".20

253 Ver Constituição da República Federativa do Brasil, arts. 205-13, 227; Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 124(XI) ("São direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros, os seguintes: . . . . receber escolarização e profissionalização . . . .") O estatuto também dispõe: "Durante o período de internação, inclusive internação temporária, as atividades pedagógicas serão obrigatórias." Ibid., art. 123, para. Único.

254 Entrevista da Human Rights Watch, Casa do Adolescente, Porto Velho, Rondônia, 24 de abril de 2002.

255 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

0 Entrevista da Human Rights Watch, Anexo do Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

1 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação Espaço Recomeço, Ananideua, Pará, 8 de abril de 2002.

2 Entrevista da Human Rights Watch com Mário Rebelo, 23 de abril de 2002.

3 "Com certeza, ao principio de maio estará funcionado." Entrevista da Human Rights Watch com Raimundo José Pereira Barbosa, Escola Estadual Josephina de Melo, Manaus, Amazonas, 23 de abril de 2002.

4 Entrevista da Human Rights Watch, Centro Sócio-Educativo Senador Raimundo Parente, Manaus, Amazonas, 23 de abril de 2002.

5 Entrevista da Human Rights Watch, Centro de Internação de Adolescentes Masculino, Ananideua, Pará, 9 de abril de 2002.

6 Entrevista da Human Rights Watch, Centro Juvenil Masculino, Ananideua, Pará, 10 de abril de 2002.

7 Entrevista da Human Rights Watch com Loide Gomes, 18 de abril de 2002.

8 Entrevista da Human Rights Watch, Santana, Amapá, 16 de abril de 2002.

9 Entrevista da Human Rights Watch, Centro Sócio-Educativo Masculino, Ananideua, Pará, 12 de abril de 2002.

10 Entrevista da Human Rights Watch com Francisco Lemos, 18 de abril de 2002.

11 Entrevista da Human Rights Watch com Loide Gomes, 18 de abril de 2002.

12 Entrevista da Human Rights Watch com Francisco Lemos, 18 de abril de 2002.

13 O Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais dispõe que a instrução primária "deverá estar disponível a todos" e que a instrução secundária "deverá estar geralmente disponível e acessível a todos por todos os meios apropriados". Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotada em 16 de dezembro de 1966, 993 U.N.T.S. 3 (entrada em vigor em 2 de janeiro de 1976, e ratificada pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992), art. 13. O artigo 28 da Convenção sobre os Direitos da Criança reconhece "o direito da criança à instrução"; o Estado compromete-se a tornar a instrução secundária "disponível e acessível a toda criança". O Protocolo de San Salvador contém disposições semelhantes. Ver Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos na Área de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ("Protocolo de San Salvador"), adotado em 17 de novembro de 1988, O.A.S.T.S. No. 69 (entrada em vigor em 16 de novembro de 1999), art. 13(3). O Brasil acordou ao protocolo em 8 de agosto de 1996.

14 Ver Pacto Internacional sobre Direitos e Políticos, art. 24; Comitê de Direitos Humanos da ONU, Comentário Geral 17, para. 3.

15 Convenção contra a Discriminação na Educação, adotada em 14 de dezembro de 1960, 429 U.N.T.S. 93 (entrada em vigor em 22 de maio de 1962), art. 1. O Brasil ratificou a convenção em 19 de abril de 1968.

16 Ver Comitê de Direitos Humanos, Comentário Geral 18, Não-Discriminação, 37ª. sessão, 10 de novembro de 1989, para. 13.

17 Regras da ONU para a Proteção de Jovens, art. 38.

18 Regras de Beijing, art. 26.6.

19 Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, art. 2(1). Ver também Convenção sobre os Direitos da Criança, art. 28. Não obstante, "a realização do direito à educação ao longo do tempo, isto é, `progressivamente', não pode ser entendido de forma a esvaziar as obrigações das partes representadas pelos Estados de todo conteúdo significativo. A realização progressiva significa que as partes representadas pelos Estados têm uma obrigação específica e contínua `de atuar da forma mais ágil e eficaz possível' para garantir a realização integral do artigo 13" do pacto. Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Comentário Geral 13, O Direito à Educação, para. 44.

20 Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Comentário Geral 13, para. 31. De forma mais geral, o comitê estabeleceu que a obrigação de garantir o exercício dos direitos do pacto sem discriminação tem "efeito imediato". Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Comentário Geral 3, A Natureza das Obrigações das Partes Estados, para. 2.


Voltar
Bajar en formato pdf

I. RESUMO

II. RECOMENDAÇÕES

III. UMA VISÃO GERAL DA DETENÇÃO JUVENIL NO NORTE DO BRASIL

IV. MAUS TRATOS PELA POLÍCIA MILITAR E GUARDAS CIVIS

V. USO EXCESSIVO DA CONTENÇÃO

VI. VIOLÊNCIA ENTRE JOVENS

VII. CONDIÇÕES DE VIDA

VIII. EDUCAÇÃO

IX. SERVIÇOS MÉDICOS E DE SAÚDE MENTAL

AGRADECIMENTOS

HRW Logo

Copyright Human Rights Watch 2000
350 Fifth Avenue, 34th Floor, New York, NY 10118 Estados Unidos